sábado, 24 de maio de 2008

O Sr. Embaixador na Emílio Ribas

A essa altura do blog, pelo menos os que aqui habi(u)aram, já sabem da Emílio Ribas, logo ali no Cambuí, nos tempos de uma outra Campinas. No entanto, sempre que à Emílio Ribas me referia, era para falar da sala, do vitrolão, do sofá, ou chão, onde eu ouvia música e onde algumas me marcaram de maneira especial. Hoje, no entanto, quero falar de uma música que a Emilio Ribas ficou me devendo, mesmo tendo sido lá que a música se insinuou no meu desejo. Mas levei anos para realizá-lo, e só acabei meio que satisfazendo o desejo, por conta dessa brincadeira de "me lembrar" da Emílio Ribas, a casa de minha estranha família.
Além dos bolachões 78, a casa tinha uma quantidade bastante razoável de livros. A "biblioteca" era um armário embutido que ficava no quarto que eu dividia com meu irmão mais jovem. E os livros se ofereciam sem nenhuma censura do pai ou da mãe. Nada daquela coisa de que isso não é para a sua idade, ou livros proibidos (um dia conto de um que eu marquei como "proibido" por conta própria e, eu supunha, provavelmente cheio de sacanagens que atiçavam a imaginação do garoto de 10/11 anos). Sem censura, numa rua que não me oferecia uma turma de moleques para viver nela (tinha, desde aquela época, as "minhas meninas", como até hoje tenho e prefiro), com a facilidade de "morar" na biblioteca, acabei me tornando um leitor ávido e, graças a Deus, sem nenhum critério na escolha do que ler. O gostoso era a leitura, ainda desgarrada de gêneros, pompas autorais, carimbos de obras-primas etc e tal. O gostoso era a descoberta das palavras (que Lobato me ensinou mais que a escola), as viagens pelos mundos imaginados e imaginários, as aventuras que compensavam a falta de rua e molecagens.
Claro que, bem no início, comecei com Monteiro Lobato e outras obras dirigidas ao "bem menino" que eu já fui. Depois, um pouco dos livros do Edgar Rice Burroughs, ou seja Tarzan e uma África fabulosa, uma pitada de Conan Doyle e um Sherlock, que eu nem desconfiava cocainômano mas que me apresentou o fog londrino (que mais tarde, morando em Londres, descobri já não haver) e os livros de mistério, que até hoje curto. Dumas e seus mosqueteiros e até mesmo Quixote, Sancho Pança e os moinhos de vento, que até hoje enxergo com os olhos do Cavaleiro da Triste Figura. Mas eram ainda todos livros meio infanto-juvenis.
Com o tempo, aos poucos, fui apanhando livros ao léu, que lia como tinha me acostumado a ler as reinações de Narizinho, Pedrinho e Emília (sob os olhares bondosos e nada severos de Dona Benta e Tia Anastácia com seu nome de princesa russa), ou seja, buscava histórias, coisas com começo, meio e fim, que me permitissem um envolvimento com a trama e os personagens, e sonhar, é claro. E esse hábito de gostar de histórias ficou tão arraigado em mim, que nunca cresci muito para a literatura moderna, que para ser moderna teve que explodir com a antiga forma, com o contar história (como na pintura e sua terrível fase abstrata; aliás, bem feito para todos os abstratos, o tempo passou e hoje, entre os pintores da modernidade, são os dois figurativistas ingleses, Bacon (falecido) e Lucien Freud que batem todos os recordes nos leilões).
Com essa leitura desordenada li Flaubert (e nem desconfiei do peso do drama sexual/moral nele implicado), Zola, Dostoievski (sem me dar conta do peso e da amargura que seus livros relatavam, mas, é claro, deixando o "dark" que neles explodia em personagens trágicos, fosse, sem que eu percebesse, passando para dentro de mim com o poder que as palavras têm), Tolstoi (juro que li Guerra e Paz inteirinho), e tantos outros que depois soube serem clássicos. Dostoievski, por exemplo, reli quase todo em uma outra idade, quando já tinha condições de apreender melhor o seu mundo angustiado e neurótico. Mas na Emílio Ribas, eu lia, lia, lia.... E sonhava que a vida era uma aventura de folhetim (e é, de uma certa forma, como demorei a reaprender).
Mas, como o que me fascinava eram as histórias, que viravam aventuras em mundos que eu desconhecia, tempos que eu não vivi, lia, além dos clássicos, alguns excelentes contadores de histórias que nunca se tornaram nomes de peso no cenário literário mundial. Por exemplo, Somerset Maughan que, me parecia, era do agrado de meus pais, já que a quantidade de livros dele que lá havia era enorme. Li Cronin, mesmo sabendo que era tido como um escritor para moças (nunca soube porque). Jorge Amado, por outro lado, apesar de exímio contador de histórias, quase não havia lá em casa, e só vim a conhecer o moço bem mais tarde (acredito que, como ele era comunista, e seus livros muito "socialistas e sensuais", mesmo antes da Gabriela que o libertou do romance engajado para passar a falar, quase, que só das carnes morenas que a baiana tem, ele era propositalmente não comprado por meu pai, que meio que acreditava que o comunismo era uma doença grave, contagiosa e destruidora de lares, ou seja, um perigo a evitar, mesmo naquele lar já tão destruído pelas desavenças conjugais).
Entre os autores nacionais, que eram minoria na biblioteca da casa, o expoente era, sem dúvida, o Érico Veríssimo, delicioso contador de histórias que acabou ofuscado por seu filho tímido (coisas do Brasil, minhas nêgas). Me lembro de umas férias escolares de julho em que, não sei porque razões, não fomos para Santos, nas quais devorei todo O Tempo e o Vento, na época composto por três enormes volumes (O Continente, A Ilha e O arquipélago) que atualmente encontramos divididos em livrinhos menores para os leitores menores de hoje em dia (Um certo Capitão Rodrigo, que até virou mini-série na Globo, por exemplo). Ler a Odisséia, assim mesmo com maiúscula, da família Cambará, conhecer mulheres fortíssimas e independentes, como Ana Terra, acompanhar as guerras, os conflitos familiares, a decadência, ou estilhaçamento, da família, marcou-se como a minha leitura predileta daquela época.
Mas Érico Veríssimo tinha vários outros livros que fui lendo ao longo dos anos. Em 1965, eu já com 17 anos, ainda na Emílio Ribas, li O Senhor Embaixador, cuja história confesso que nem me lembro mais (o outro Érico que me marcou muito já aconteceu na minha fase de estudante de engenharia, já meio visita lá pela Emílio Ribas, em 1971, O Incidente em Antares, obra primorosa que também virou coisa global).
Mas, apesar de me lembrar quase nada do O Senhor Embaixador, me lembro que o personagem passava suas noites no escritório/biblioteca de sua casa escutando, com profundo deleite, a Partita nº 1 para Violoncelo de Bach. E como eu amava Bach (história que já contei) desde meu sofrer de amor brandenburguês, amava o Érico, e achava o Embaixador um homem muito refinado (sempre dei ás histórias um forte cunho de realidade), queria muito escutar essa Partita.
Aí vem minha vida independente, onde comprava meus próprios discos, fazia minhas próprias escolhas musicais. Vem a bossa nova, a MPB moderna pós BN, o jazz, os clássicos sinfônicos, ´ssas coisas. E, por alguma razão que Freud explicaria se eu lhe perguntasse, nunca me lembrava da Partita em questão. Tenho Partitas bachianas para violino, para piano, mas nenhuma para violoncelo. Havia esquecido o Embaixador, vestindo um robe chiquérrimo, no escurinho de sua sala/biblioteca, tomando um bom vinho ou outra coisa chique qualquer, de olhos fechados escutando Bach, enquanto se preocupava com os destinos da América Latina.
Mas com essa coisa de ficar contando historinhas de minha adolescência, rememorando coisas já tão passadas (uma das coisas boas do envelhecer, segundo entrevista recente do Umberto Eco), acabei me lembrando da tal partita. A pesquisa no YouTube não foi farta em resultados, mas prometo que vou encomendar a obra completa. Por enquanto, encerro essa postagem quase tão longa quanto O Tempo e o Vento, com o único vídeo que encontrei com a Partita nº 1 para Cello de Bach. Como o vídeo explicará, fico sem saber quem toca, apesar do vídeo, provavelmente, dar os créditos devidos. Aliás, espero que o malabarismo das imagens no vídeo não atrapalhem a audição da música.
E se um de vocês tem a Partita completa, Pipoca e eu muito agradeceríamos se nos mandassem.

Um comentário:

weisenheimer disse...

olha que coisa: você lia os mesmos livros que eu e a liberdade de escolha da leitura era a mesma,na minha casa, também...
muito bom...
até a minha rua era literária, josé de alencar, o grande...
meu tempo e o vento teve o livro I afanado; pois não sosseguei enquanto não o repus de um sebo;
e vou achar a partita pra você, tá? tenho inúmeros outros bach, se lhe interessam, vale a requisição pro próximo sarau musical.
beijo