terça-feira, 31 de março de 2009

Poeminha besta nº 3


Com águas e vinhos te beberei.
E no seio de tuas carnes,
te beber toda eu buscarei.

Assim, bem assim, sem pudor,
te lamberei inteira
te chuparei com ardor.

E minha boca há de beber
de você o tudo que há
até que nada mais possa haver.

E te darei, da minha, na tua boca,
os sucos que experimentarei
neste te deixar bem louca.

Depois, como cicuta,
morreremos de amor,
um homem e sua puta!

Poeminha besta nº 2


Temos a mesma pele,
descobri anos depois.
É isso que nos impele
a sermos um, sendo dois.
Amar é ter a mesma pele,
o resto vem depois.


Torquato da Luz

Poeminha besta nº 1


Sugar e ser sugado pelo amor
no mesmo instante
boca milvalente
o corpo dois em um
o gozo pleno
que não pertence a mim nem te pertence
um gozo de fusão difusa transfusão
o lamber o chupar e ser chupado
no mesmo espasmo
é tudo boca boca boca boca
sessenta e nove vezes boquilíngua.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 29 de março de 2009

Enquanto isso, em mim....

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Crisma!

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O que me encanta é a magia,
Que resiste ao nada que a sustenta
O que me seduz é a beleza,
Que resiste às carnes corroídas
O me diz é o carinho
Que resiste à ausência que se impõe ao toque.
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O que sei é o que me sinto,
Belo, encantado, acolhido
Como a pérola da qual nada sabe a concha
Me resguardo em quem não me sabe.
Escondido, escandido, nada para nenhum olhar
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Até que um pescador me colha e me revele,
Outra pérola em busca de uma menina
Que me fixe enfeite, enfeitiçada,
E me retorne ao nada donde parti.

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Para ser lido, e olhado, escutando Bizet, Les Peucheurs des Perles, de preferência cantado por Alain Vanzo
Publicado pela primeira vez em algum momento do início de 2007

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sexta-feira, 27 de março de 2009

Cada vez mais...Silêncio


Fazer do blog art´manha e ofício
Desaperceber dos amigos as ausências
Desligar de todos a pouca presença
E soltar o verbo, as letras e os vícios.
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Se colocar à chuva e receber seus pingos
E o sopro dos ventos e o bater das tempestades
E lavrar silêncios e as poucas maldades
Para dançar com Zorba, sempre aos domingos
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Valer as penas que ali me inscrevem
Dar tempo aos pensos que lá me curam
Esquecer visitas e os que não procuram
Ser sempre só, mesmo que neguem.
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Nos grãos de areia enxergar desertos
Abandonar o litoral apagando rastros
E fazer da escrita meus próprios traços
Para bem cá de longe, me olhar de(s) perto.
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.Bar do Frango, em algum momento de abril de 2007
Publicado originalmente em abril de 2007

quarta-feira, 25 de março de 2009

Enquanto isso, no Bar do Frango....

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Coxas de andorinha (Carne a dentro)

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Do Frango às coxas,

destas às moças,
uma história tonta
que aqui se conta.
Mas verá o leitor
que no fim de tudo,
resta um amor
obrigado mudo.
..
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Vou abandonar o Frango
pelas coxinhas.
Espero que, lá, o rango,
quero dizer, galinhas,
se demonstrem mais dignas
desta troca ousada,
e me espetem insígnias
pela decisão tomada.
Abandono os machos,
frangos, frangotes,
para me gastar no escracho
dos meus velhos botes.
Quero coxas, coxões e sobrecoxas,
para fazer valer, enfim,
esta coisa roxa
que cacareja em mim.
Adeus Frango querido,
benvinda Coxinha minha!
Salve, salve, minha outra vida,
reapareço, desaparecido!
logo ali, numa outra esquina,
da sempre mesma pracinha.
Ali beberei as cevas que acolá eu tinha,
esquecerei os machos que por lá dormiam,
e far-te-ei Pasárgada, Coxinha minha,
ao encontrar as frangas que me comiam.
Do Frango a ti, será que errei?
Mas se és Pasárgada,
lá sou amigo do rei,
que mulheres me guarda,
e escolherei.
Delirante em ato,
só por escolha,
evito o farto, e o fato
de que esta outra bolha,
é fogo fátuo
de meu desejo errante.
Mas sigo adiante,
para além do Frango
uma Coxinha me espera.
Cansei do tango,
viva a quimera!
E do Frango às coxas,
e da suposta ousadia,
resto sem dança,
fico sem moças,
me agarro à lembrança
da anatomopatologia.
E por aqui eu resto e fico,
índio na oca,
com o dela Tico,
meu São Pipoca.
E só falta um nada
para ser Seu Zé
e retomar minha trilha;
é o Zé Mané
e a Sacra Família.


Dedicado à Gilza, que espero não ter perdido em vão
Publicado originalmente em maio de 2007

domingo, 15 de março de 2009

Sobre insetos, aranhas e morcegos

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Aranhas, morcegos,
Sonhos dormidos,
Vôos cegos,
Paraísos perdidos

sábado, 14 de março de 2009

Caio F., 48 + e -, ou Sobrevivendo à morte de todos os presságios.


.Para Nina, que me ofereceu os morangos

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Caricatura de Eça de Queirós e seus personagens
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Os companheiros

(Uma história embaçada)

Para Eduardo San Martin

Poderia também começá-la assim -- pi-gar-re-ou & disse: diríamos que Ele apresentava-se ou revelava-se ou expressava-se (entregava-se, quem sabe?) ou fosse lá o que fosse, naquele momento específico, por uma predileção, tendência, símbolo, sintoma ou como queiram chamá-lo, senhores, senhoras, aos cafés amargos, aos tabacos fortes, aos blues lentos, embora a redundância deste último. E os morcegos esvoaçavam ao redor da casa. Esse o início.

Os morcegos esvoaçavam ao redor da casa e o De Camisa Xadrez, que fora amado e ferira a quem o amara, ainda amarrava os cabelos na nuca. O De Camisa Xadrez ainda tinha cabelos suficientes para amarrar na nuca. Então era desse jeito: o De Camisa Xadrez amarrando os cabelos na nuca enquanto morcegos esvoaçavam ao redor da casa e, como numa orgia, como num vício, como numa tara, como num inconfessável ritual sadomasoquista. Ele entregava-se aos blues amargos, cafés fortes, tabacos lentos. Só não tinha ainda identificado a moça porque era tão moreninha & brejeira que abriu logo o papo trans-cen-den-tal, ela embarcando, Peixes, logo vi, regente Netuno, ah Netuno, cuidado com as ilusões, mocinha, profundas e enganosas feito o mar que é teu elemento. E assim passaram-se anos.

Cruel citar grafites tipo homem, mate a mãe que existe dentro de você, a minha já está morrendo objetivamente, no plano real-objetivo,, feliz ou infelizmente ela existe fora de mim (e esse era um fato que não alterava e, repito, fato – porque tudo são fatos, só eles existem, mas isto é outra história – como ia dizendo, não se esquive do fato de haver uma história em suspenso aqui, não digamos assim, pois uma história jamais fica suspensa: ela se consuma no que se interrompe, ela é cheia de pontos finais internos, o que a gente imagina que poderia ser talvez uma continuação às vezes não passa de um novo capítulo, eventualmente conservando as mesmas personagens do anterior, mas seguindo uma ordem cujas regras nos são ilusoriamente às vezes familiares? Ou inteiramente aleatórias? Isso eu não sei, mas a verdade é que chega-se sempre longe demais quando não se quer Ir Direto Aos Fatos, e o problema de Ir Direto Aos Fatos é que não há cir-cun-ló-quios então, e a maioria das vezes a graça reside justamente nesses Vazios Volteios Virtuosos, digamos assim: que não haja beleza nos fatos desde que se vá direto a eles? Ou que não exista mistério, que seja insuportavelmente dispensável gostar dos tais circunlóquios. Ultrapasse-os, ordeno. Acontece que. Não, nada acontece) – mas, por favor, não falemos disso agora.

O cruel vinha de que o silêncio também seria inábil e farposo, contudo educado, então feria, e não pense que vou esclarecer quem, facilitando as coisas por cegueira, pressa ou tontura: o cruel era a palavra verbalizada, e o verbo era o mal? Mas o silêncio idem, e voltando um pouco atrás, se o verbo era o mal, no princípio seria o Mal e não o Bem como queremos supor? Oh. Apenas na estradinha de terra batida que subia o morro, entre o rio e o mar, foi que começaram a divertir-se um pouco, identificando-se sestrosos. A Médica Curandeira tinha crespos cabelos negros que acentuavam seu dramatismo, aliados a Certo Ar Sofrido De Mulher Com Mais DE trinta Anos Que Já Passou Por Muitas Barras. E era até simpática, descobria prosaico o Jornalista Cartomante entre dois goles de vinho, duas tragadas do tabaco amargo velho conhecido. O Ator Bufão cumpria com eficácia paradoxal suas funções de pano de fundo freqüentemente estridente demais, mas inofensivo como costumam ser os bufões, mesmo quando se metem a contundentezinhos.

Era nesse pé que as coisas estavam quando. E quase não havia nada a acrescentar, porque nada acontecia entre eles, a não ser, utilizando certa nor-ma-ti-vi-da-de e não necessariamente nesta ordem: a) Climas Indefiníveis; b) Sutilezas Indizíveis; c)Nobrezas Horríveis. Nomeava assim. Horríveis com maiúscula, porque mesmo não tendo que justificar-se, enfim e ao cabo: nobreza em excesso roia por dentro, isso era como a conseqüência de uma aprendizagem instalada agora dentro do quarto. Como se por baixo do longo cano de uma luva branca imaculada, por trás do rendilhado dos canutilhos houvesse garras torcidas, esguias feito torres góticas, arranhando vidraças fechadas na treva.

Mas assim era. Caminhava na rua sem tocar na rua, conseguia. Movimentava-se entre espelhos. Caminhar na rua: jogo de infinitos. O de agora remetendo ao de antes, que refletia o depois, que era algo bem próximo do agora, e assim por diante ad infinitum circular. Tudo refletia-se. Cada reflexo o devolvia a algo que não a ruapropriamente dita. Essa, por onde caminhava. Poder-se-ia argumentar contra Ele que isso não passava de mais um meio de não se comprometer demasiado. Uma daquelas Horríveis Nobrezas, porque concluir ou reconhecer uma aprendizagem não significava necessariamente passar a agir de maneira diferente. Mas queria dizer que, naquele momento, naquele fato suspenso em que nada acontecia, de repente e sem nenhum motivo, a Médica Curandeira (de passado guerrilheiro), o Ator Bufão (egresso de um seminário) e o Jornalista Cartomante (com raízes contraculturais) não estava preocupados ou diminuídos pelo fato de serem Caricaturas Representativos De Uma Geração, fosse qual fosse: eles foram intensamente felizes enquanto nada acontecia. Pelo menos até que se ouvissem novamente os morcegos lá fora. Claro que não sabiam disso – da felicidade, não dos morcegos sinistramente audíveis – nem talvez saberão um dia; exatamente por isso é preciso que se diga, para que ninguém entenda, mas pelo menos fique registrado, em benefício de nada nem ninguém. Sendo completamente o que eram, inspiravam estufados de humaneza sem culpa.

E tudo isso ia acontecendo sem acontecer propriamente, enquanto a Moreninha Brejeira, se olhada mais atentamente, o que era difícil, guardava alguma fundura por trás da brejeirice e, olhando bem, nem parecia tão moreninha assim.. Era exaustivo, mesmo sem muitas palavras entre eles, não aqui, onde é o único jeito de tentar contá-los. Era incompreensível também, para quem nunca esteve dentro de algo semelhante. Mas reconfortante, mesmo que não bebessem chá. Como costumam ser os reencontros, afinal. Ou como deveriam costumar ser, que o mais das vezes são é mesmo puro desconforto, mesmo com chá.

Só que os morcegos, porra, não paravam de rondar, embora fosse verão e a casa tivesse sido branca um dia e o gramadinho até mesmo guardasse recuerdos fagueiros de tardes ensolaradas com bolas dessas de grandes gomos coloridos e doguezinhos saltitantes ao pé de raparigas um tanto antigas e naturalmente em flor nos seus modelinhos rendados com meias soquetes desabando sobre sapatinhos de verniz, bambolês & bilboquês abandonados nos degraus de pedra gasta. Tinha um gosto remoto disso tudo, a casa. Mas Ele não acreditava o suficiente a ponto de justificar a presença dos morcegos, ou não seria mais que uma suspeita? Pois sequer, falha imperdoável nesta história, a casa comportava sótãos poeirentos, porões sinistros, bananeiras nos quintais. Pensando melhor, continuavam sem saber, fazia muitos anos, se a realidade seria mesmo meio mágica ou apenas levemente paranóica, dependendo da disposição de cada um para escarafunchar a ferida.

Preferia então, Ele observá-la ao espelho, como quando caminhava na rua. Isso o remetia a outras feridas mais antigas, nem mais nem menos dolorosas, porque a memória da dor da feridantiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva. O que provavelmente deve ser muito sadio. A Moreninha Brejeira jamais poderia supô-lo imerso em tais inutilidades cerebrinas, e já não restava uma gota de cumplicidade entre De Camisa Xadrez e o Jornalista Cartomante, posto que isso implicaria uma espécie de homoerotismo sublimado, se é que me faço entender nesse meandro. Como uma cópula moral, uma foda ética ou etílica, sabe-se lá a que requintados níveis de abstração, perversidade ou subterfúgio podem chegar certas trepadas. Considerava feridas, enfim, totalmente mergulhado nos lentos blues, nos tabacos fortes, nos cafés amargos vezemquando substituídos por conhaques (densos) ou vinhos (secos). Entre duas palavras quaisquer, era capaz de deter-se para tomar providências objetivas, tipo esvaziar cinzeiros, trocar discos servir bebidas abrir janelas para fechá-las em seguida, rápido, para que os morcegos não entrassem.

Quando a Médica Curandeira, era ainda capaz de exibir na pele torturada as marcas dos cigarros acesos, principalmente nos seios e nas coxas, numa espécie de sedução pelo avesso, pelo ideológico, não pelo estético, mas isso só na intimidade mais absoluta, quando estivesse descartada qualquer possibilidade de ser enquadrada em algum tipo de exibicionismo leninista-trotskista. Se bem que, como rugas e perdas, cicatrizes também fossem troféus. Grandes fracassos, tipo Napoleão em Waterloo, deveriam ser condecorados, afinal por que essa discriminação maniqueísta? Cobrava o Ator Bufão, vezemquando tomando as rédeas para jogar no ar palavras que, como bufão que era – e dos bons, diga-se a seu favor --, transformavam-se em várias bolas ao mesmo tempo jogadas para o alto. Seria capaz de (des)ordená-las nas mais infinitas sequencias combinatórias, tipo duas vermelhas no ar sobre a cabeça uma roxa na mão esquerda uma azul na mão direita e aquela amarela passando por baixo da perna direita ou esquerda, não importa, e no ar também, neste exato momento, aquela verde musgo. O problema maior do Ator Bufão era que todos os seus talentos não valiam um vintém, visto que nos dias de hoje já não existe mais muita gente interessada em bizarras combinações no ma-la-ba-ris-mo com bolas coloridas.

Ele baixou os olhos. Feridas, cicatrizes, desejos – mastigou, mastigaram. Contra a janela fechada (para que não entrassem morcegos), a Moreninha Brejeira junto à Médica Curandeira parecia uma Capitu levemente amadurecida, pedindo conselhos àquela Catharina dos ventos uivantes. Só não sabia de si, nem de parâmetros, o De Camisa Xadrez – aquele que fora muito amado e ferira fundo de faca a quem o amou: permanecia mudo parado suspenso entre várias coisas que já não eram e outras tantas que poderiam vir a ser, ou não. Enquanto nada se decidia, amarrava os cabelos na nuca, posto que ainda tinha cabelos, embora a década fosse outra, e outros os delírios. Amarrava-os assim e agora, tão nítido, porque essa era quem sabe sua vitória tácita, sua implícita vantagem naquele momento em que, além de nenhum avanço, todos os demais tinham cortado ou perdido os cabelos. Haviam chegado a um ponto em que verbalizar morcegos poderia arruinar tudo, mesmo que nada houvesse a ser arruinado. Mesmo que sequer houvesse morcegos.

Pois diga-se ainda que, apesar do ruído côncavo de asas, daqueles miúdos guinchos cruzados no ar, das garras viscosas sem luvas nem canutilhos arranhando as vidraças, mesmo olhando-se vezemquando nos olhos há anos empapuçados de álcool e drogas, não se atreviam a verbalizar morcegos. Ou não é que não se atrevessem: os morcegos talvez fossem incomunicáveis, pois em não sendo verbalizados, e portanto compartilhados, cada um suspeitava que fossem estritamente pessoais & intransferíveis, compreende? O que quero finalmente dizer é que não verbalizando os morcegos, os morcegos não existiam, passando a ser o que não eram: uma metáfora de si mesmos. Sendo assim (tudo tão lógico), nem sequer obscuras tensões pairavam sobre o De Camisa Xadrez, a Moreninha Brejeira, o Ator Bufão, a Médica Curandeira e o Jornalista Cartomante, todos sem pretexto algum para estarem ali agora assim, sentados sobre o tapete no quarto do Marinheiro Frustrado, que andava ausente, embora deixasse em seus devidos lugares as âncoras polidas e as luzidias maquetes de transatlânticos, alguns dentro de garrafas. Ausente também o Marido Ideal, já que sua função na vida sempre fora mesmo ausentar-se estratégico sem deixar vestígios, o que tinha sua dose de melancolia, mas também de alívio, convenhamos. Como as estantes de madeira escura suportando o peso das obras completas de Karl May, Michel Zevaco e Edgar Rice Burroughs.

Dentro do pleno verão, pela escada soprou inesperadamente um vento frio.

Nesses momentos, quando os blues tornavam-se ainda mais lentos, é que se ouviam os morcegos lá fora. Nesses momentos é que contemplavam os mútuos tênis espatifados, mesmo que estivessem descalços, considerando fatos incontornáveis como a pilha de pratos sujos na pia da cozinha. Ir Direto Aos Fatos agora seria por exemplo correr sem vírgulas para a pia armado da mais higiênica das intenções & um bom detergente biodegradável. Ou virar o disco para liberar um blues ainda mais agônico, quase insuportável de tão dolorido, que cada nota emitida pelo sax durasse pelo menos o tempo do Gênesis. Até que a Moreninha Brejeira estalasse os dentes contra uma maça imaginária para, de certa forma, expulsá-los do paraíso. E produzir-se-iam abrolhos e urzes e espinhos e nutrir-se-iam com as ervas dos campos e comeriam o pão temperado com o suor da própria fronte – pois são assim os ciclos, comentaria didático, mas um tanto fatigado e já sem graça, o Ator Bufão. Os demais, não se sabe, calariam. Ou não fariam gesto algum, o que é sempre uma maneira ainda mais muda de calar.

Ao mesmo tempo, para todos, era extremamente cômodo e perfeitamente insuportável permanecer assim, no meio do parado, suspeitando vôos de morcegos por trás das janelas fechadas daquele quarto onde, quem sabe, apenas as âncoras ancoradas nas paredes poderiam indicar qualquer coisa como um – rumo? E finalmente, por uma longa série de razões vagas fundas baças tolas ou ainda mais confusas, esse tipo de coisa era praticamente tudo que se poderia dizer sobre eles. Assim lentos, assim amargos, assim surdos, assim fortes até. Sobrevivendo à morte de todos os presságios.

FIM
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Caio Fernando Abreu, Morangos Mofados (1982/1995)

sexta-feira, 6 de março de 2009

Os primeiros ai ais.


Ai ais

1

Foi tudo que eu sempre quis
Fazer valer a-penas
O que de mim se diz

2

Prestar a tensão em mim
é dito que quisera feito
até o fim.

3

Certos lugares têm
a capacidade de nos fazer felizes
com qualquer bem.

4

Ela não é nada
Pouca presença, resto de tudo
Sem lugar na cama, criado mudo

5

Deus te guarde e console
Que a vida, meu rapaz,

Eu e eu (Delireu)

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De antemão explico, para que não reste nenhuma dúvida, que não sou ele, mas ele é eu. Deu para entender? Se deu, deu; se não deu fica assim mesmo, que mais que isso não sabe ele, nem eu. Coisa assim mesmo, meio impossível, como acostumei a conviver nestes tempos dele e eu, no indecidível de nós dois nem um.
Esse blog, por exemplo, é coisa dele, mas tudo aqui é meu. E o que não é meu, pior ainda, é puro eu, coisas dele quando lhe faço meu. Já dele não sou, pois ele é eu e não me sou meu. Complicou mais ainda? Ele sente muito, mas assim sou eu, cheio dessas reviravoltas, cambalhotas e carambolas. Passo com a banda, não vejo passar. Sou a mais dele e nele me falto até me esbaldar. A escrita, por outro mesmo lado: os traços são dele, mas nela lhe traço, pois o traço é eu. E lhe traço o eu lá dele, mas sendo eu, desde os começos quando ele apareceu, num estalo precipitado quando pensou ser eu. Desde então ele me supõe, um eu lá dele, que não sou eu, que me imponho a ele e o faço meu. Coisa que muitos outros eus acabam não conseguindo, e somem nas sombras dos eles deles, que viram do Outro, que não é Eu. Cansativo, não é mesmo? Daí que a maioria fica na mansidão do terror do Outro, que só assusta lá as negas dele, grama-ticando o eu no bom comportamento da pouca linguagem, no eu retórico que não sou eu nem ele, lisonja de um bem dizer que não nos diz nem nada. Graças a eu, não é o caso dele. Até que ele tenta assossegar-se nos Outros que os outros lhe emprestam, mas sou mais eu, e remonto o furo desses Outros dos outros do eu, deles, distante. Pois furo é furo, tudo igual. Desmonto, demonstro, e lhe imponho meu, again and again, olho no olho, eye no I, as you can say. Coisa de doido, é o que pensam muitos, os do Outro, que não sou eu. Mas vamos levando, sempre a bailar, pois se parar o Outro pega, se correr lhe come o Outro, coisa dos outros doidos, pois todos são. Ele e os outros, cada qual com a sua doideira. Sem contar os doidos doidos, os eus sem eles, ou eles sem nem sombra de eu. E vamos, deslizando sempre, mas muito bem acompanhados. Cheio d´eus famosos, é só saber olhar. Oscar Wilde, Foucault, Genet, Mishima, nenhum doidão, apesar de doidões também ter vários, inclusive esses próprios, de vez em quando. Pega o Van Gogh, o Bispo do Rosário, e tantos outros mais, que muito sofreram nessa de eu meio sem ele pra botar no mundo do Outro, rei da linguagem, mãe de todos e dono da bola do jogo que temos de jogar se não queremos perder orelhas ou acabar na Juliano Moreira. Sem contar os tantos outros pares impossíveis de ele e eu, como ele e eu, que deslizam anônimos provocando eles lá na linguagem do Outro deles. Porque, que fique aqui bem dito, eles, os outros, são todos iguais. Já eu e ele somos só eu e ele, mesmo quando me finjo nele no mundo deles. Daí não termos par, nem paz, apesar de vivermos tentando cumplicidades que nunca duram, dada nossa diferença. Mas, me entenda, nós não somos diferentes deles, já que diferentes todos se supõem, e são num assim dizer. Nós somos, ele e eu, pura diferença, o que é completamente diferente. Pois eu sou eu, ele é ele, ele é d´eu, e eu sou traço, troço, que lhe marca meu. O que eu quero com tudo isso? Não sou de mais querer, que isso é coisa dele, já que meu querer é ele, e ele é d´eu. Onde isso nos leva? Não sou de chegar, sou puro de vagar de porto a porta, e vice versa que nunca é só ao contrário, de lá para acolá, que cá sempre já era, como o rio que passa e insisto, eu mesmo, em ver igual. Pura metonímia, sacou? Tava procurando metáfora? Ele sente muito, e eu lhe aconselho: tente no shopping, tá cheio delas, algumas até bem engraçadinhas. Aliás, nada contra as metáforas, das quais abuso na boca dele, que o jogo é esse e o sucesso é uma delícia. Prá bem dizer, adoro uma metáfora, mas só para escorregar depressinha prá outra. Metaforonímico, como dizem eles por detrás dos eus lá deles. Eu vou ficando, que na escrita é onde mais me arrisco, pois só na busca inútil existo e aqui me fixo, meu horror confesso. Mas ele estará por aí, onde eu o arrastar. Pois agora vocês sabem: lá onde ele está, quem manda é eu, pois eu não sou ele, mas ele é eu. Nunca se engane, por trás daquele olhar lá dele, me encontro eu. E muito cuidado, pois eu sou foda, mas quem fode é ele (e se fode muito, pois ele é meu e eu, já disse, sou pura foda de se meteu). Pois vai daí que você gama n´eu, e tem que viver com ele? Se quer um lago, eu passo ao largo, se quer um rio, sorrio. Mas quem manda é eu. Entendeu? O resto é conversa de Prometeu mas não cumpriu. Puta que pariu, ele sumiu! E eu? Fodeu!
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quarta-feira, 4 de março de 2009

O aparecimento da aranha alucinada (que ainda nem se sabia)

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Eumateia
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O que, dela, não perdôo nela,
É ter deixado, em mim, essa idéia
De que para além da vida, há uma janela.
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O que nela, dela, ainda não perdôo
É ter mostrado que para minha aldeia
Há um caminho árduo ou um simples vôo.
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O que não consigo acomodar em mim,
No que dela inda trago nas veias,
É a certeza impune de um meu triste fim.
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E temo varandas, sacadas e todas as janelas,
E me sinto aflito a me debater na teia
Onde me espreita a aranha que ainda é dela.
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Mas na teia apreendo, teço e terço,
O que de mim é tudo e dela é meia,
E da prisão infame me livro em versos.
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Da cruz me dispo, braços me acolhem
Minhas Marias e um José de Arimatéia.
E pela janela, aberta, dos insetos, me faço pólen.
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Bar do Frango, 18 de abril de 2007

Postado em 18 de abril de 2007




A persistência da memória

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Web Tide
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Navego em ondas sem fim
por mares ainda mais imensos,
sem porto que me caia à vista
em um triste navegar.
Pois não têm de ter fim as ondas?
Não há que se desmanchar em´spumas?
Fazer rir crianças quando, aquietadas,
lambem areias?
Não é das ondas arrepiar os corpos
no encontro frio com as águas que nelas ondulam?
Serem mansas, bravias, e sempre outras?
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Onde as conchas que minhas ondas não desvelam?
Onde o barulho, se nunca se quebram?
A fúria, se não desmontam ruidosas?
O sabor, se não lambem areias?
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Que ondas são essas, essas ondas minhas?
Que mar é esse que me navega?
Onde as crianças, as mães aflitas e os grãos de areia?
Onde meu povo, meu litoral?
As oferendas, onde estão?
As flores, as palmas as velas e os organdis?
Onde minha arrebentação?
Onde os nomes, as juras e as pegadas
Que em lambê-las, apagaria em traços?
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No entanto são essas essas ondas minhas
Ondas desertas de espuma
Sem saber a sal ou mares
Sem praias para morrer
Sem areias para lavar os rastros.
Sem litoral, erram neste mar que mar não é
Saem de mim, fogem de mim, vou sempre com elas
Nelas me perco na rede de suas marés
De solidões povoadas, escolhos, naufrágos e míticas sereias.
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Pois são assim, essas ondas minhas.

Bar do Frango, 07 de fevereiro de 2007
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Postado no dia 03 de abril de 2007

domingo, 1 de março de 2009

A primeira poesia a gente nunca esquece

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De Profundis (para O.W.)

Nada como Pessoa, navegado qual Paulinho,
Faço do blog odisséia de onde retornarei.
Se ainda a tortos caminhos,
Ao chegar me saberei.

Nas teias com que me tecem,
Nas sereias que enlouquecem,
No umbigo em escravidão,
Espero, que finda a jornada
Aqui já não reste nada,
Nem sonho, nem assombração.

Se hoje sou quase morto,
Se vivo, me erro torto,
Navego para um litoral
E blogo com todas as velas,
Pintando, em quase aquarelas,
Com tintas que sabem sal.

Nas areias que chegarei,
Não quero sexta, nem feira.
Retrato de Dorian Gray,
Em cinza, para não ser bandeira.

No meio de todos ausente,
Nas grades não verei prisão,
Que a verdade a gente mente
Pra, do eu, prestar a-tensão

De mim mesmo serei alcaide,
De meus desejos não saberei.
De Profundis, Oscar Wilde!
Salomé, viva meu rei!


C´Oração

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Ave Marias de todas as raças
Mistérios, gozares, desgraças
Bendita sois vós, em mim demente
Desvarios, de'lírios, serpentes
Infinito desvio de meu não saber

Bendita sois vós, tod'as mulheres
Desrazão benvinda de meus bem quereres
Perdição infinda onde me erro ermo
Sentido pleno de meus mancos termos
Cruzes de meu mais phoder

Bendita a fruta de vosso ventre
Que tomo com bocas, línguas e dentes
E mais narizes, dedos e pobre caralho
E molho nas gotas de teu orvalho
A flor de meu convosco ser.

Bar do Frango, 01 de março de 2007
Publicado no blog no dia 01 de março de 2007