segunda-feira, 19 de março de 2007

Estudo para uma jovem mulher








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Te procuro nas coisas boas
em nenhuma
te encontro inteiro
em cada uma te inauguro
Alice Ruiz
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Tô bebendo minhas culpas, meu veneno, meu vinho.
Escrevendo minhas cartas, meu começo, meu caminho.
Estou podando meu jardim.
Estou cuidando de mim.
Vander Lee
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Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.
Adélia Prado
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Não fosse isso e era menos,
não fosse tanto e era quase.
P. Leminsky

sábado, 17 de março de 2007

Eununca Suméria (parte I)



Aviso aos leitores: estas letras miúdas permanecerão como aviso de que a obra está inacabada e terá continuação aqui mesmo neste espaço, isto é, neste mesmo post. As modificações poderão tanto ser da ordem do "avanço da história", como modificações e inserções no corpo do texto já publicado. Portanto confiram, pois não confio em minha preguiça ao digitar e a proposta é de lenta produção. Ou esperem o desaparecimento desta nota











A vida, para ser vivida e contada, carece de muito esquecimento

Paulo Emilio Salles Gomes, Cemitério



Nasci no século passado, primeira metade, turma de 48. Isto é, não levando em conta as considerações da senhora minha mãe, que me garantia uma fieira de encarnações anteriores onde, em uma das piores, eu teria sido faraó de alto a baixo Egito. A encarnação de 48, essa que vos escreve, seria minha última passagem pelas dores e prazeres da carne, e ápice de uma carreira encarnativa de estrondoso sucesso, onde, coberto de glórias ectoplasmáticas, terminaria minha saga como filho de Dona Nise. Do trono faraônico à esfinge materna, bem mais do que 40 séculos me aplaudiam, e a seta do progresso sem peia encarnava em/de mim. Enfim, quem nunca teve mãe que atire a primeira pedra. Ou me decifre. Ou me devore.



Retorno, que é melhor não colocar a mãe no meio. Nasci em 48. Horóscopo chinês: Rato. Peguei carona no lombo do boi (ou do touro, dependendo do chiquê de quem fabula) e, na hora H, saltei, dei uma mísera corridinha, e fui o primeiro a chegar ao lado do Buda, que repousava sua plácida gordura sob uma árvore majestosa, tentando não desejar nada, muito menos aquela visita da bicharada histérica. Olhei bem para o Boi, mirei atentamente o gordo Buda e concluí: bundões, os dois. O boi pela facilidade como foi enganado por um reles Rato como eu (meu complexo marxista em ação; Groucho, please!), e o Buda pela óbvia disparidade entre seu "nada desejar" e suas carnes fartas (só agora me ocorre a hipótese de que talvez o pobre Buda fosse como aquelas senhoras gordas, que entram no consultório do médico de regime e vão logo dizendo, sem nem mesmo corar: "Não sei porque estou assim gordinha; eu não como nada!", fato tão comum na prática médica que levou um médico que conheci outrora a pensar seriamente em revolucionar as ciências lá dele, e aproveitar para ganhar uma notinha com um livrinho de auto-ajuda, lançando a tese, com vasta sustentação empírica, de que "não comer engorda", idéia que me pareceu tão brilhante que nunca entendi porque ele não levou adiante - eu, por exemplo, na época em que comia um quase nada e tomava muitos chopp, e sendo o chopp um excelente diurético, como todos sabem, criei uma enorme barriga, justamente pela minha insistência no não comer) De qualquer forma, como algum Buda é da ordem do necessário, me acostumei a pegar carona para o Buda do outro. Sempre outro bundão, o outro e seu Buda. E toca a procurar outro outro, tentar um Outro Buda. Meio cansativo, ou metonímico demais, como diria o Lacan (bundão) que mais tarde encarnou em mim. Mas como bundões abundam, vem dando para t(r)ocar até agora. Mas cansa muito. Pois quem mandou chegar primeiro, justo quando o ar ainda exalava odores de uma flatulência solitária do gordão. Contrariar sua natureza, quem há de, como diria o Escorpião de minha Lua


Retorno. Turma de 48, classe: Setembro, dia 8, para ser mais exato. 05:15 da madrugada (primeira e última vez que acordei em horário tão indecente; ainda bem que dessa encarnação eu não passo). Nasci Virgem e analfabeto, como a mãe de Nosso Guia Inácio (já tivemos melhores jesuítas, pois não?). Racional, lógico, ´ssas coisas que dizem de Virgem, mas que nunca encontrei virgem que fosse (aliás, não tenho nem certeza de haver encontrado uma virgem que fosse virgem). Mais tarde, me adianto, fui ser engenheiro. Lógico, não é mesmo? Xongas nenhuma; a Virgem em mim não tinha necas de piripitiba a ver com isso: papai era médico e bundão. Me livrei do médico, não do bundão. Sai a Virgem, entra Freud (bundão). Aliás, me livrei da Virgem com muito alívio, dado ser signo em sério risco de extinção, atualmente só encontrável, em finais de inverno, em berçários onde a presença de chupetas, ou qualquer outro objeto levemente fálico, seja proibida. Resumindo, não sou mais virgem, já fui. Ascendente: Leão. Sol na Casa 1. Voilá, minha vocação. Criei juba e tomei gosto pelas leoas. Lua em Escorpião, virei Zé Bonitinho, o perigote das felinas (mas só prás minhas nêgas, é claro). Adorava, sem saber da(r) conta.



Pré-namorei um pouco. Sempre a mesma, várias vezes. Nem ela nem eu tínhamos peito naquela época. Achava o sobrenome dela horroroso. Pelo amor de meus filhinhos, desisti. Aí fui tentar namorar de verdade, tipo a rosa que tu me deste. Fazia serenata mas não cantava ninguém. Um dia dancei. Comecei a namorar. Namorei anos a fio. Sempre a mesma. Virou mãe de meus filhinhos. Sobrenome bom. Nos intervalos entre o nascer e o morrer de amor (morri de amor, mas casei já ressucitado, muitos dias depois) fui: locutor de rádio, maratonista de matemática, campeão de box, campeão em concurso de fantasia, brinquei de médico sem ser papai, ator aclamado no papel do pai, avis marias, cultas ciências, diretor de um departamento responsável pela politização das massas secundárias, católico de esquerda, à esquerda dos católicos, inimigo do rock em geral e do iê-iê-iê em particular, usuário de calça boca de sino, portador de bigodes, barbas e boinas, terror (um dos) das empregadinhas do Cambuí, desbravador de praias desertas, acampista avant le camping, explorador de castelhanos selvagens, membro de várias gangues de rua, fausto de diabo covarde, primo de um monte de primos, primo pobre de vários primos ricos, primo rico de vários primos pobres, promessa de genialidade familiar, neto de Antenor, sobrinho residente de Guida e Marião (que nem era Marião ainda), inimigos das freiras e afins, punheteiro radical mas solitário, pedófilo na tenra idade, abacate podre no grupo escolar, gênio primário no mesmo grupo escolar, pentelho da Gilda e do Mané Fala Ó, remador no Atibaia, nadador de longo curso (o Atibaia era tão largo, naqueles dias, quanto o Amazonas veio a ser mais tarde),moleque de praia nas campinas gerais, figurinha fácil com ares de difícil, revolucionário de botequim, paixão de putas cansadas, e, sei lá, mil coisas mais. Ah! Fui, sou e serei pontepretano fidelíssimo. Antes, durante e depois. Desde 1900, o torcedor mais antigo do Brasil, haja visto minha história reencarnativa.



Assim fui crescendo (há controvérsias). Casei, procriei, continuei no de mim não sei. Filho é foda, litaralmente. Quase não dava mais para namorar. Eu tava na peneira, com Ivon Cury (a primeira peruca a gente nunca esquece). Outros tempos. Agora, casados e terceiro idosos também namoram. Naquela época, o máximo admitido era que os brutos também amassem. Nunca fui bruto. Fui ficando. Sempre com a mesma. Não ia à guerra, nem em paz vivia. Continuava meio engenheiro, cheio de técnicas, polilógico. Atravessei a Mancha, mas não apaguei. Conheci ingleses que me desconheceram por não haver quem nos apresentasse. Ia ser doutor, virei fotógrafo. Em preto e branco. Comi indiano, grego e demais especiarias. Só não provei do pão que o inglês amassou. Voltei ao Rio. Inútil paisagem, mas muito linda.






Campineiro. Meio cheio de frescuras, viadagens e empoamentos. Leão, juba de Carlos Gomes, pretensão de Barão, sempre ao lado do Jockey, no Ponto Chic. Silva Leite dos castos Mendes, meu livro azul permaneceu em branco. A juba e a pretensão regiam minha ópera, apesar de odiar o Guarani. Preto e Branco, rugia em carioquês. Juba e pretensão desembestaram quando assumi o palco de aula. Professor (em português, please!). Dos bons. Adorava (a) platéia e dava show (só mais tarde comecei a dar recados também). A maioria de meus coleguinhas de trabalho (bundões) tinha stage fear e, prá aquietarem suas covardias, achavam aluno um saco. Eu amava. às vezes com todas as letras. Colecionava leoas. Bocejava, sacudia a juba, dava meus rugidos MGM. E comia do melhor pedaço. Um tédio. Como uma paisagem de savana africana. Mas bem fotografado.



Carioca de novo, assumi o leme, a zona sul e outras zonas. O Rio era uma festa. Amigos, conhecidos, simpatizantes, malucos beleza, fontes luminosas adentradas em muitos anos, artistas, atores, veados em figurações inteligentes, tudo sob a co-regência de um doido gordo recém saído do Juqueri. Tudo muito famíla, com leves toques de Nelson Rodrigues. Musica, dança, pau duro, barangas se insinuando e dando moleza, histéricas renitentes, todos dourados nas areias do Leme, em frente à palmeirinha. Bem lá no fundão, o show continuava outro do mesmo. Doutorado em Mediterrâneo, minha camisa branca de Mykonos na tez morena do Leme, embevecia ouvintes surdos. Mal comportava-me na medida do possível. As brumas inacabadas de Avalon foram parar no fundo de uma gaveta qualquer. Bebia-se muito. Comia-se um pouco. Sempre a mesma, mas às vezes não. A vida como ela era. A idade da razão chegou, mas a razão atrasou-se bastante. El Cid, altura de Quixote, corpinho de Sancho Pança, falso como os moinhos de la Mancha, bundão oferecido, mantinha a peteca, e as pererecas, no ar, até voltar para o Juqueri. Fim da festa, saudades da Paris do Ernesto, que nunca me convidou. Bateu um sudoeste, o sol sumiu e as nuvens começaram a ficar carregadas. Eu e a mesma já não éramos os mesmos. Mas a família cresceu, no peito dela. Brinquei com fogo e me queimei. Saudade dos priminhos.



Separei, fiquei, brinquei, aprontei, mas sempre muito família. Jamais descasei. Nunca fui bígamo. Semper infidelis. Casado, separado, juntado, às vezes tudo ao mesmo tempo, a mesma sempre no meio. Estado civil: incerto. Era difícil preencher os formulários. Sexo, mentiras e abobrinhas (ainda não tinha video-tape, pelo menos "do lar"). Amigos sempre, como sempre até agora, que estou meio sem nenhum. De preferência muitos. Mulheres (amigas), uma porção, uma colher de sopa cheia de veados e uma pitada de homens, que homem é um bicho muito chato, tudo bundão. Daí minha sempre renovada curiosidade com as mulheres e os veados, que gostam da raça. Nunca entendi, acho uma viadagem gostar de homem. Minha alma feminina (dizem elas) e meu veado campineiro, me garantiam o coração da tchurma. Alguns flechados, outros ousados. Me fazia de virgem, de vez em quando. No Fundão, era pau prá todo lado. Do lado dos homens e, principalmente, do lado das mulheres. Elas ganharam, é claro. Como dizia meu filho, o delas era imaginário e, portanto, sempre maior que nossos pobres apêndices anatômicos. Murchamos em retirada. Mudei de pasto. Caçadas noturnas nas vitrines do Leblon. Distraído, fui capturado numa teia significante e nunca mais rugi como dantes. Me apaixonei. Bundão!




<--- estudando com Melanie Klein. Pois é. Acontece. Me apaixonei. Loucamente. Pela Psicanálise. E a puta transformava tudo em punheta. Como já era, me oficializei punheteiro, dos outros, mormente. Mó sucesso com as histéricas do campo (psicanalítico, que no agrícola elas gostam da coisa mais dura). Enfim um homem (bundão) que não reivindicava a maiúscula lá delas. Gozei muito. Até com algumas que gozavam com s. Nunca aprendi a gosar. Mas amava mesmo a Peste da Psicanálise. Enxergava a mardita em tudo, até no Jornal Nacional. Na época não tinha TV a cabo, era tudo a general. Aprendi a falar lacanês com certa facilidade e dei de brincar com letrinhas, barbantinhos, e outras maluquices do Dr. Lacan. Babava no babador. Sem nunca ter elegido Mestre, troquei um metido inteligente por um crápula burro. Abandonei as vitrines do Leblon e fui correr minha metonímia lá no Hipódromo da Gávea. Os mestres escola eram o crápula burro e sua senhora, a rainha louca, sempre a gritar: "cortem-lhe a cabeça". E a Alice era eu. O canalhinha de Nazaré tentava, mas era muito burro. Descobri a Perversão no meio de perversidades neuróticas. Abandonei mais uma mulher, só porque virou mulher: minha analista. Minha análise foi prá frente. Assumi a Perversão e os neuróticos anônimos da Gávea amodiavam-me. Mas a Coisa não me cheirava bem.

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.Entrei na minha fase bíblica Do pó eu vinha, ao cujo havia de retornar. Pó Es War, soll Maizena Werden. Sem Bíblia, só com os canudos de minhas graduações. Virei Cyrano, ou Juquinha, nosso eterno menino trovador. Metia o nariz em tudo. Tinha grandes aspirações. E continuava fazendo o maior sucesso na carreira. Soltei as frangas e fui colecionar borboletas. Virei Professor (in english, por favor!). Incomodei de veras. Os coleguinhas continuavam com stage fear e só queriam saber da bilheteria. Escola de Business, Muita Bogagem Acadêmica, comédias ligeiras sem grandes dramas. Atores globais: péssimos, mais cheio de modas. Time was money, and money is the fool´s go(l/o)d. Mediocridade abundante, espertinhos de canalhices incompetentes mas consequentes, e até gente boa que nem sabia o que estava fazendo lá. Um case sério. Nas margens, no mesmo bote que eu, um geniozinho simulador e, principalmente, uma A. com dois n´s, que tinha a seu favor a fragilidade de seu sexo forte. Coloquei a puta da Psicanálise para organizar meus cursos. Nó-meei sujeitos só para mostrá-los insignificantes. Aceitei bundões, penalizei bobões e denunciei mensalões. Como não podiam recalcar o escrito, virei indecidível. Meu Sintoma gozou com Z de Zé. No meio tempo, virei decano do lugar, apesar de uma múmia que lá aportara depois de mim e que conservávamos em um formol estratégico. Mas como eu havia sido faraó, a múmia morria de medo de mim. Abandonei as leoas e dediquei-me a brincar com as feras que lá haviam, do outro lado da cerca. Criei algumas. Me são domésticas até hoje.



No indecidível onde sempre me equilibrei, continuei na terceira margem do Rio. Com A., e seus dois n´s, me mandei extra-muros, onde rolava um sarau legal, cheio de petiscos textuais e textos apetitosos. Extra-muros, mas de olho vivo, que não sou Édipo (bundão) e não me ceguei. Sou mais o Nero: comeu a mãe sabendo quem era a baranga, gostou e ainda tocou fogo em Roma. Perdeu-se por ousar cantar Desafinado e atiçar a ira do João Gilberto, que ainda não havia encucado com O Pato naquelas eras. Eu, continuava sem negar fogo, principalmente nos circos que frequentava. No mais era como o Ziraldo, mas nem sempre. Aprendi que o duro não é passar mulher prá trás; é passar ela prá frente. Assim como é fácil arranjar mulher, duro é mandá-las embora. Pagava com mercadoria pela conveniência. A Psicanálise continuava só falando de mim. E eu dela. Minha primeira peste, ela ia minando o meu Sintoma, dedo em riste na minha cara, me chamando de bundão. Eu ainda de babador. Bundão! Dei de escrever, que falar sempre falei muito. O Dito pelo Escrito. Como no bicho, (só) valia o que estava escrito. Tive um tremendo Mal Estar. Ninguém ligou.



Tudo ilusão (chateei muito com esse nick, mas isso foi na parte II, que por enquanto nem tinha essas coisas de internet; vivíamos com as bundas fora do ar e das cadeiras). Tudo bundão. Até aí, c´est la vie en rose, nada a fazer, graças e alvíssaras. Mas dei prá começar a provocar: o gerente é um bobão. Coisa que podiam não ser. Os bobões e/ou futuros bobões achavam lindo quando eu falava isso, sempre achando que eu me referia ao colega ao lado. E iam ser bobões na vida, com nossa augusta chancela. A terceira margem me sabia impossível, sempre varrida por ventos solitários. De arrepiar puta velha. Na terra dos cegos, errei. Olhei prôs lados e me mandei. Resolvi não entender mais nada de Psicanálise, mas muito mais profundamente. Queria uma douta ignorância. Educadamente pedi licença e zarpei. Me mandei prô fundão de Campinas: Barão; e fui ser aluno com a chancela papal em São Paulo. Barão, São Pailo, Barão, entradas e bandeiras, vivia na Bandeirantes ou na Anhanguera. Pontifiquei doutamente, abati católicas Perdizes no campus. Mas sempre gauche, como mandava meu Sintoma, com o qual já, há algum tempo, ia fazendo conhecimento e tesão. Continuei minha intransigente defesa dos perversos, patinhos feios da Psicanálise (os psicanalistas os odeiam, por se recusarem a ser neuróticos ou loucos). Legítima defesa da honra com ares de teoria. Eles, os perversos, cagavam e andavam para minha defesa e para a Psicanálise. Mas insistia, prá defender o meu na reta. Cada vez mais paladino: "Buda é Bundão" e, horror dos lacanianos, "Papai não é não existe". Mexer com o Nome do Pai é pior do que botar a mãe no meio. Arrepiei neuróticos, ouriçei histéricas que não entendiam nada (como sempre) mas ficam todas molhadinhas com a possibilidade e só pensavam n´Isso, incomodei leões de chácara em Guará. Mas o rugido do Leão assustava a horda primitiva, e o gume da faca teórica, ainda Virgem, mais ainda. Continuei minha longa carreira de dar nó borromeano em pingo d´água. Os velhos leões castrados não gostavam nada, nada. Mantive a virgindade, que não sou besta. E as leoas, que são muito bestas. A vida seguia. Em ritmo National Geographic Magazine na Tv do cabo. Um tédio bem fotografado, com algumas matanças inevitáveis. Coisas da vida como ela é. Animal!




Daí morri! Ou quase isso, o que é bem pior. Virei pó. Bem no final de 1994. Aliás, todas minhas mortes e ressurreições acontecem em finais de ano. Carma que já tá me deixando impaciente. Mas Isso fica para depois. Tempos de zumbi sem Palmares. Vodu do Zédu. Pois é do Zé. Depois eu conto da conta que chegou e que pago até hoje, em eternas prestações mensais. A saga continuará. Batata, como se dizia nos tempos do onça e do Nelson Rodrigues. Agora vou dar um pulo em Pasárgada. O rei me espera. Nú! Depois escolho a mulher que escolherei. Tudo tem seu preço. There´s no free meal.





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Corta!!






Apêndices.




Apêndice 1. Um breve resumo para entendidos (inclui as partes restantes e o mito de Gilgamesh).
























.Apêndice 2. Das origens sumérias do texto (em elaboração por nossos especialistas em línguas mortas e suas infelizes esposas; os mais apressados podem ir se familiarizando com a Suméria no link Ancient Sumeria indicado nos favoritos do blog)

sexta-feira, 9 de março de 2007

Com ciência de Zeno

.... Tarde! ... Ora, se assente que me dará prazer. Tava aqui assuntando a natureza, mas ela vai continuá aí depois de nosso proseio. ... Meu nome? Não lhe disse o povo que aqui lhe indicou caminho, ou pergunta por artes de educação? ... Pois eu sou é Zeno, ´ssim mesmo com Z de Zuleica, único outro Z de verdade destas bandas de cá, que o resto é Zé, com z menor de jota abandonado. Pois então, Zeno, desde o início de minha criação. ... Diferente? Vejo que o moço rodeia, mas mesmo assim lhe conto a história que me nomeia. Coisa do pai, que era hóme dado a um ler curioso sem dar portância pros limite do seu entender. E foi que um dia, pensando nas lavoura com que sonhava enricar, bateu-se com um livro de trigonometria que achou largado na casa do falecido vigário, e que guardo comigo, junto com ´tras coisas que dele deixei sobrar; e só por isso sei o nome do justamente que lhe disse. E, apois, mesmo de trigo não sendo o livro, se encantou com as palavras que lá se apresentou, pois assim era o pai, danado com o cantar das palavras. Achava tangente uma palavra das mais linda, e usava ela prá contar do gado caminhando ´bediente no seu tangenciar. Quando uma discussão se apequenava num empacamento qualquer, dizia que as coisas tavam muito quiláteras, encerrava a diferença, e tocava prá outro assuntamento. Nasci quando ele namorava o livro; e aí ele me escolheu Seno prá nomear, seu, seu filho. Mas, saberei nunca, seje por má falação do pai, seje por ouvidoria preguiçosa do moço do cartório, fui escrito, e juramentado naqueles oficiamentos, Zeno, como deste então sou. Quando o pai se apercebeu, já era tarde; eu já tinha nome carimbado de não mais apagar. Além do mais, lhe fez gosto o som do Z, e a diferença mesma que o senhor anotou. A mãe, que já bem queria Seno, que dizia ser nome de rio de muita fama, mas nas sabedoria do nome do pai, nas suas falas de mel me chamava S/Zeninho, enrodilhando S e Z na língua lá só de suas doçuras prô menino que sempre lhe fui, até quando nem mais menino eu era. Com a mãe, era S/Zeninho e pronto, té o fim. Já homem feito, na brabeza de minhas mocidade, era Zenão pro povo, coisa que o outro vigário, o italianinho que adepois se escafedeu com a Meire, filha de Jair e Iracema, pois me dizia o carcamano danado, quando nem era safado ainda, que Zenão era nome de um coisa e tal lá dos cafundó da Grécia, lugar que penso ficar prá lá do mar que não conheço. Tardô os tempos e voltei a ser Zeno, com o Seu no antes, que aqui sou respeitado pelo Zenão que fui e pelo nome que é meu. Mas o moço não se achegou ao meu lado prá escutar história de minha nomeação. Assim como lhe vejo, é outra sua tensão no se gastar comigo neste pouco toco que lhe ofereço assento. Se for o caso, vamos pros pontos, que o moço é claro e eu não sou tonto. ... Coisa delicada? Pois já lhe digo que delicado só conheço Olindo, menino damo, filho de Virgilio e Maria Fejão, e que, com toda delicadeza, é mais macho que os bigodudo da idade dele. Tanto que dameia sem vergonha, e ninguém lhe cobra não se ser como ele é. Nem Virgílio, muito menos Maria Fejão, que até gosto acho que faz. Pois então, deixe o moço de delicadeza para com minha pessoa, deixe de andar de roda, abandone a ciscação, e vamos ao que lhe interessa, me de ciência de sua chegança, seu interesse em minha pessoa. Isto se o senhor não for deste´s´vangélicos novos, que deram de nos querer vender terras no céu. Pois se for, tome seu rumo, antes que eu lhe meta a mão, que me dá nas gana essa dizimação em nome do senhor lá deles. Prefiro um bom desafio às lenga, lenga desse povo incréu. ... Nada disso? Pois me alivio, que o moço tem lá suas cara de pregador e eu já tava no desconfiamento com sua pessoa. Sendo assim, diga seu troço, que não sou de fugir de boa provocação. ... Como dizer? Diga no bucho, que não sou de estremecer, nem mesmo com extremunção. ... Como? O que o senhor me diz? ... Me acusa? E com toda razão, aquela toda que a gente só tem no acusar um outro vivente. Confesso! Sou sim senhor! Um viciado. Principalmente em mim mesmo, vício impossível de desviciar. No seguinte deste, no meu jeito de ser, que é quase a mesma coisa, se já não for, e também impossível de abandonar sem grave prejudicação para isso que nada sou além do jeito de ser de mim mesmo. Sou, apois, viciado em minha prória pessoa, e reconhecido deste viciamento. ... Como? ... Os outros vícios? Sim, seguro que tenho, em pencas e cachos de bananeira garbosa. Sou um bicho falante, cheio de cacoetes, meio medonhoso, com algumas bonitezas, mas mesmos essas bem viciosas. ... Outros vícios são de muita pequeneza, concordo. Não lhes dou muito tento, pois sou tão viciado em só encarar lutas maiores, brigas mais cavernosas, que nem boto reparo que vou me vincando nesses vícios bobos que me apequenam o corpo para as grandes brigas, e me grandeiam rugas, barrigas de muito pesar, encanamentos entupidos, falas com falta de ar, crueldade com os pequenos, descuidação dos grandes. Desses podemos falar, até mesmo tabular negociação, nos por exemplo, só para me mostrar acordado com suas considerações para com minha pessoa. Mas se me permite, e já já damos seguimento, justinho depois, acendo um cigarrinho para pitar nossa conversação. ... Como?... Mais de 4.700 substância tóxicas? ... Diria que, tendo o senhor sua razão numérica, é grandeza quase tanto e quanto penso o número de coisaradas que vemos nas lojas do comércio ou no cinema da televisão. Mistério da saúde, advirto. ... Tegiverso? Pois quem me dera tivesse verso, mas sou é mais proseador. ... O cigarro? .... Insiste? .... Não fujo. Mas falo dele e de outros vícios. Só o fracassar cansa a pessoa, daí que ao cigarro, com quem inda não pelejei nadinha, sucederei batalhas ganhas, todas nos vício de minha coleção. Combinado assim? ... Então me disponho à sua provocação. Mas lhe aviso, não sou Seu Zé, esse sim de vício tonto em sua pitação, pois, já lhe disse o moço doutor, de coração todo fartado, vai morrer antes da hora se não largar a viciação. E morrer antes da hora é malvadeza das pior, que nem se refestelá na malvadeza o morrido pode. Até donde sei de mim, o Zé é o Zé, eu sou eu mesmo, duas diferença cheia de mesmices, mas coisa duas. Um e outro. ... Mesmo assim? Me diga, então, de suas razões, que já lhe percebo bem arrazoado. O senhor me diz, lhe escuto, e se me permite, matuto, e devolvo minha causação, se for boa causa no meu pensar. Mas não me venha com as horripilanças, que se nem do tinhoso tenho covardia, não será nesses horror futurosos que picarei a mula de meu pitar; pois é como já bem dizia um cumpadre meu, lá das ribas do bem mais prá lá, viver é perigoso, e complemento, e pode ser muito doído, no que é sempre doido. Melhor tentar me agradar a idéia, aí, quem sabe me encanto com a coisa, e dou valor à consideração que o senhor me pede. ... Viver mais? Mais que o que, se aposso lhe perguntar? Como Seu Zé, que não deve ir antes do tempo, não intento ficar mais que meu devido. Pois tem muito vivente que perde a hora, e vive um mais que não tava escrito. E todos, pelo menos no meu conhecimento, vevem bem menos nesse viver a mais. Quero meu tempo, como tempo já tive, bem outro que este, mas é que eu era outro e não volto mais. Quero viver na minha régua, no meu de acordo com o já vivido, com o outro que já era eu, no hoje que já não é mais ontem, nem o trás donte ontem que amanhã será. Com essa o senhor não me pega, que não me apego. O senhor me desculpe, mas morro amanhã, que não sei quando é. Morrer depois é malvadeza com a gente mesmo. E querer viver mais é coisa de quem tem medo da Coisa, da Medronha, e viver com medo nunca ´prendi, nem vejo sabedoria no aprender. O senhor tente outra, que dessa escapulo sem nem matutar. ... Vou cheirar melhor? Acho difícil, e tento lhe explicar, pesar do moço, ainda sem pelo nas venta, ser meio demais de moço prá modo de me entender.. Não que me pense de cherador perfeito, mas já sou como o sabiá, que canta de ouvido. Eu cheiro de olhar. É só ver mato molhado, mesmo que bem nas lonjura, que cheiro de lembrança, sem presição de chegar perto, coisa que o moço, com seus nariz sem pito, duvido saber fazer: cheirar mato de longe, chuva lá diante, manga madura lá no pomar do Jair, e tudo sem daqui me arredar, cheirando só nos zóio de meu olhar. Mas cheiro bom mesmo, cheiro que se fosse só de lembrar a coisa não ia cheirar, é os cheiro das mulher. E meio que aduvido que, com meu pitar, perco esse cheiro quando me enfio, de cara toda, lá nas partes cheirosas das dona. Porque elas cheiram alto, quando a vontade delas é bem fervida, e não vai ser o pito que vai me impedir de servir às carnes. ... Senhor diz que pode? ... Fica mais dificultoso? Mas isso porque, tão moço, ainda acha que só serve com a coisa amastrada, e que a dureza é a mãe das belezura nas briga de home e mulher. Não que eu não tenha mastro pra, nele, elas navegar, mas aprendi, c´as próprias, lhe confesso, que a boniteza da coisa é a vontade das coisa, e que tendo os dois vontade muita, é mastro, é remo, é vela, é vento, vale tudo nesse navegar. Não sei se o senhor me entende, meio pouco vivido que é, mas mulher, meu cheiro bom, é bicho de sérias e muitíssimas complicações nessas manhas de brincar. Muitas, tantão de muitas, diria até, nem sabem das belezura desse complicado nelas escondido, pedindo hora prá se apresentar. E não complicando, ficam no sem saber mesmo delas, tadinhando nas grosserias dos homes, virando vaca de touro besta, que é como nós home é se não aprender o complicado de que tento lhe explicar. Por graça, muitas outras, complicando, vão ensinando a gente, que nós é tudo meio bobo, assim como o senhor me parece, com essa cara de abestado frente a esse meu dizer, e nós precisa aprender muito nas complicações do mulherio prá das carnes fazer fastio. Que contece que no começo nós é tudo meio homem, meio cavalo, sendo o cavalo nas parte de baixo. E besta, mesmo garanhão que seja, se não sabe fique sabido, besta não sabe brincar; só sabe fazer o serviço, que é coisa sem complicação, e égua não é de complicar. Precisa, prá ser home de cabo a rabo, perder o rabo e ficar com o cabo complicado. E isso não é coisa que venha feita num sujeito de nascença, tem que aprender na complicação. Mas depois de aprendido, e tome mulher complicada na nossa educação, é muito bom descomplicar elas na sabedoria que as próprias nos fizeram atentar. Daí que o cheiro exala, o gosto estala, a coisa rola, deita e desagua.O mastro, como o moço sabe, sempre acaba arriado. E o que inda vai aprender, que até começando arriado o senhor pode descomplicar. E aí já lhe dei conta de duas das suas razão: do cheiro, prá quem como eu tem lá sua preferências no cheirar e, no mais restar, cheira de ouvido; e, do mastejar, que só é coisa complicada para quem nunca descomplicou a complicação que, de vera, há. Sei que o senhor vai querer falar do tal do saborear, pois nesse arrazoado não me inaugurei nessa nossa parlatação. Pesar de que, com as moça da Saúde, nunca pude falar como lhe falei; só escutava calado e no meu todo repeitoso, que elas, pelo menos no seu trabalhar, não são de complicação. E de sabor lhe respondo, antes mesmo do seu perguntar. Ou não lhe respondo, pois se o moço comigo me acompanhou, o sabor tá respondido nos mesmo da cheiração. Resposta lhe seria até ofensa, ou cansaço pra sua atenção de ouvido. Que primeiro me repetiria nas safadeza que acabo de confessar, que mulher, além do cheiro, é coisa pra saborear. E aí os entretanto são os mesmos mesmíssimos que aqui já lhe coloquei, e não adianta repetir, pois a razão que eu tenho o senhor, ou já sabe de que lhe falo, ou então não vai saber de novo. Das outras saborosidades, também prá lá de muitas, do meu gostar, saboreio com meu lembrar. Tanto é tanto que, no mais das gente que me é dado conhecer, o tal do saborear é sempre coisa de nunca mais, bolos da vó do povo que era criança, laranja que o que era menino roubou no pé, o feijão de uma falecida, coisas que é só de lembrar, num nunca mais dos menino crescido, das avó já se finada, das mortinha de tal, num tempo do hoje passado. Se o pito apagasse as lembranças, aí sim era coisa de considerar. E nem me fale em caminhar, que hoje já me basto sonhado, só olhando prás serras onde já subi. E nem quero subir mais, pois subia por precisão, ou até por diversão, que muito me diverti com o tudo que precisei. E hoje já não preciso mais; e como só tem diversão no fazer da precisão... Pois é. De novo as lembranças, que não tem pito que faça lambança. E teje verso, vai ver o senhor tinha razão ... Não? ... O senhor me entende? ... Lhe reconheço por isso, mas lhe vejo com um olhar coitado que não era minha intenção. Por isso lhe digo já, por seu reconhecimento, o senhor tinha razão. Só errou no com quem quis arrazoar. Se posso lhe aconselhar, antes de que, do que é só meu, o senhor titubeie nas sua própria razão, mude de conversa comigo, vamos prá outro proseio, que estou até lhe fazendo gosto. Mas não deixe sua pregação. Vá falar com os meninos, antes que as lembranças façam nele deles a minha razão. E fale com o Seu Zé, que esse tá muito precisado e, amigo como ele me é, acho que ir-se mais cedo, de todos o maior pecado ... Ele mora logo ali, trás de mim. Vá lá, depois de eu pitar mais um e lhe contar mais montes ... Que bom que o moço entendeu e me deixa pitar com gosto. Se quiser lhe conto os contos lá do Seu Zé, prá, quem sabe, com eles, o senhor mirar melhor o tiro de sua toda razão. Pois ele também, ´ssim como eu, é sujeito cheio de lembranças, mas de muita precisão de tomar tento na sua azarada pitação. Ele é eu, mas com defeito de fabricação. Conversa com ele, que muito lhe ficarei agradecido. Seu Zé tem de parar de fumar. Não quero ver ele se indo na frente do meu olhar. Lhe gosto muito, lá do Zé, desde que consigo me alembrar. Mas capriche na falação, pois se me sentiu tinhoso, Seu Zé é tinhoso e meio. Igual eu, e mais um tanto. Só não lhe pirraceie, que aí o infeliz é capaz de morrer de teimosia, pitando na maior alegria. Não fale de sua razão, fale do coração. Seu Zé tem de parar de fumar. Vá lá, vá! Vá, vá ...
Mas antes de se me sumir, o moço tem por aí um fósforo?
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“Os saudáveis não se analisam a si próprios, sequer se contemplam no espelho. Só nós doentes sabemos algo sobre nós mesmos.” (Italo Svevo, A Consciência de Zeno)



Bar do Frango, entre 27/02 e 08/03 de 2007

Synãranô do Cucaú (texto da Gilza)







A estação quente campeava no mundo e tudo andava abrasado. Pedras e paus ardiam. A terra ia virando um pó seco que voava. A água minguava e nosso alimento também. Mesmo nestes extremos fogos não houve, nem tremeção de máquinas ou guerras. As formigas seguiam seus caminhos sem espanto algum.

Assim sendo, o sumiço dela, já de três noites, começou a parecer perante meu juízo como coisa própria dela, interna. Nem dado a maus pensamentos, nem ignorante, nem sábio dos perigos do mundo eu sou, donde, dei de enumerar juizadamente, e com esforço, uns possíveis motivos para esta já ruim novidade: a falta de Synãranô.

Este juizar tinha também o propósito de fazer passar a noite, pois comer eu não queria, nem folgar.

Era então mais isto ou aquilo: que ela estivesse na estação da obrigação de botar no mundo os nossos filhinhos ou dolente por ter se fartado demais.

Possível era que logo vinha. Assim, assoseguei, versejando para ela ausente, com a tristeza me alisando o rabo e ensinando que meu existir tinha pouco préstimo sem ela.

O cantador pode mais
do que o cabra podia:
com mais sentidos cantar
tua safra de encantos,
que todo o mundo aprecia.

Catita, novelo de encantos.
Boiúna te guarda e te guia.

Do ondular das água no rio,
do raio riscado no céu,
Boiúna ri!
Do lenho da sapopema estendido no chão,
da resina no tronco do cedro,
da finura do vento,
Boiúna ri!

A morena que há no morro é cheirosa.
Quando te cruza o caminho, ô
ela fica invejosa.
A tecedeira da teia é certeira e gulosa.
Quando te aprecia a caçar, ô
ela fica invejosa.
A palma no seu pedestal é formosa.
Quando te alteias, ô
ela fica invejosa.
A flozinha que há na relva é mimosa.
Quando te dormeces quieta,ô
ela fica invejosa

Novelo de encantos, catita!
Boiúna te guarda e te guia
ao meu encontro. Não quero viver só, nem poderia!
O cantador pode mais do que o cabra podia.

Na noite seguinte ela também não apareceu. Pois, então estava mesmo era feridíssima, ou morta, ou havia de me fazer entender, à altura do agravo, por onde andava que não voltava. Dois sustos e uma raiva. Me dei pressa e fui atrás dela, fui sim, lá nas bandas dela, mesmo com o risco de má acolhida e danei a procurar e muito procurar, com o juízo picado, de zangado a enraivecido e a mais ainda, e o menor sinal dela achei, no muito tempo e lugar que procurei.

De fruto desse grande demais desconsolo me deu uma tontura molente, estranha, como se eu estivesse no canteiro das arrudas. Nariz no chão, o resto de mim meio fora de mim e adormecido, perdido o sentido do que era noite ou do que não era, do que andava pelo mundo ou pulava ou corria.

Só senti inteiro de mim e vívido depois, mas doído, triste, com o coração perfurado fundo da falta dela, purgando um sentimento mortal de amor e saudade da minha mulher.

Fiquei lá, no campo dela, vagueando à toa e matutava: será, por acaso, que a danada me abandonou? Será que foi pelo mundo verde afora sem ligar que eu ficava para trás? E se foi de casal com um outro para embolada?
Então, hei de perseguir e alcançar e matar os dois de uma vez só! Hei de esquecer que matei ela e esquecer ela e hei de ser de bem com a minha vingança e depois esquecer que me vinguei. Hei ainda de comer os olhos dela, só os dela, que nunca nunca mais hão de estrelar na minha mente miúda, agora toda envenenada de ciúme da possível falsa.

A dúvida me pegou forte pelo rabo. Será por acaso, que essa cabocla foi embora? Não fechava sentido no todo do ocorrido comigo e ela, pois me esposava por seu gosto e nunca lhe notei a menor pausa ou esquivança. Donde, se por acaso não foi, ou foi por que quis ou foi mesmo sem querer. Sobretudo parecia mesmo é que tinha ido.

Passei mais noite no penar.

Dela ter ido por que quis não havia o que me consolasse, nem vingança. Isso me deu e passou, não ficou comigo, não era meu. O tudo ser belo daqui inspirava nosso viver: muito alimento, tudo paz, correrias e brincadeiras, o canavial, emboladas, tocas, cavos, ocos, ovos, tudo nosso!. Sois boba, nós era feliz e a seca havia de passar!

A idéia de ela ter ido mesmo sem querer, o meu juízo recusou. Sei que o fim por martírio é o requadro de nossas vidas simples, campesinas e assim sempre foi e será, parece.

Me deu umas doideiras e meu juízo recuou: foi saindo para outros mundos.

E se de galho alto para mais alto a brincalhona escorregou para o mundo azul e foi estar aos pés de Sua Senhora? E se foi pelo rio, coroada de folhinhas verdes, cercada do respeito geral, feito uma princesa brasileira? E se chegou sua hora de cavar para o mundo de baixo, que é o fim de todos nós? que sei?

Certo é que não está mais no nosso mundo. Nunca mais terei a minha catita. Está perdida!

Esta ciência certa que eu tive me pregou uma dor tal braba e mordente que me sinuou no ar, cobriu meu corpo de espinhos, me baralhou todo o dentro com o fora, de vez perdido. Aí que eu sofro e ardo, desesperado. Meu corpo coberto de espinhos se contorce e retorce e minha alma sai:

-Aí dor, aí medo, aí morte! Aí Boiúna grande, meu pai!Valei a um cabra cego, só e acuado. Sê clemente e me doe ainda uma vez a minha mulher!

Boiúna deu. O rastro dela em restos, carnes e sangues, se abriu no chão e seguindo vi, nas minhas fuças, pendurado nos arames, a matéria que sobrou dela, tão estampada e linda, floridinha, no comprido estripada, rompida, estufada de podre.

E alí mesmo, diante do fim dela, com o propósito daquela horinha, estava o assassino Francisco. A vista que Boiúna me deu, deu reto nas dele, calorosas. O grande, o astucioso armado vinha, mirando golpe ni mim.

Aí, Boiúna meu pai, tirou a vista e o resto.




Gilza Rocha de Melo, 2006

quinta-feira, 1 de março de 2007

Pennies from Heaven

----- Original Message -----
From: glz@heaven.god.cr
To: zedupoca@barao.geraldo.br
Sent: Wednesday, February 28, 2007 6:34 PM
Subject: Pennies from heaven

Meus queridos,

Vocês não imaginam como é difícil passar um mail por aqui. Quase impossível, não fosse a eternidade que dilui o tempo, mas que vocês não desfrutam por aí. Mais fácil fazer como Alan K., que fala pessoalmente com a sua turma, e vive me convidando para baixar com ele (o Fernando diz que o que ele faz é download). Mas como sei que vocês não freqüentam os lugares onde ele baixa, de que adiantaria? Por sorte, outro dia surgiu por aqui um cara que era "muita coisa" na Microsoft (sorte mesmo, não porque eles também não saiam daí, mas é que normalmente vão para o outro provedor, para o outro lado) e, depois de muito conversar com os donos do lugar, conseguiu instalar uma lan-nuvem. Antes só tinha uma linha exclusiva com o Elio Gaspari aí embaixo; até tentei, mas ele mandou me disser que O Globo e a Folha não tinham interesse em meu mail. Mas mesmo com a lan-nuvem, a fila é imensa e a conexão um inferno (que aqui ninguém me leia, pois inferno é palavrão dos brabos). Por isso não estranhem se eu não for assídua na correspondência. E, vou logo avisando: por enquanto só podemos enviar, mas não receber mails.
À pergunta que sei que vocês gostariam de ter respondida, confesso não ter resposta. Mas como aqui o que está feito está feito, peço desculpas, por não responder, e passo adiante. Acho mesmo que vocês deveriam parar com essa pergunta e dar os done por bygone, como aprendi com os gringos por aqui (aliás, dá até pena, mas todo dia chega uma leva de soldadinhos, todos com cara de não saber nem onde estão, nem onde estavam).
Eu estou ótima, como nunca estive na vida. E mais ótima fico quando espio vocês nos jardins de Barão. Pipoquinha me parece super alegre, e o José Eduardo, finalmente, está começando a se cuidar como sempre cansei de dizer que devia (só precisa largar o cigarro; eu, aqui, larguei). Mas só consigo ver vocês nos espaços abertos; às vezes até vislumbro vocês na varanda, um na rede, outro na almofada (José Eduardo, estou realmente admirada com a sua energia nas caminhadas e nos bate pernas pelas lojinhas de Barão). Por aqui, só a M. Curie enxerga através das paredes, e mesmo assim, muito esquematicamente. Não me dou muito com ela; aliás, evito os médicos. Cansei da raça (confesso que, mesmo aqui, onde tudo está perdoado, ainda fico meio possessa quando lembro da Dra. Márcia Rosenthal; mas penso também que, fosse ela mais competente, talvez eu estivesse infeliz aí por baixo, que era meio que uma maneira de ser que eu tinha).Assim, se médicos melhor não te-los, se perde-los, melhor esquece-los (Vinicius riu quando falei isso, e contei para ele que aprendi essas brincadeiras com o José Eduardo; aliás, sempre que nos encontramos falamos, e não conto o que, da Christininha, que é como ele chama lá a sua amiga). Aqui ando com outra turma.
Vejo muito o Fernando, que foi quem primeiro me recebeu e me mostrou o lugar. Vocês acreditam que ele estava na porta me esperando, vestindo um casaco vermelho, e fingiu não me reconhecer? Logo em seguida, escancarou o casaco, mostrou uma blusa azul e caiu na gargalhada. Fomos logo comer brigadeiros caramelados, que aqui se encontram como sonhos, em qualquer lugar (ele pede para avisar à Anna que está banido da lan-nuvem, desde o dia em que tentou hackear o site do BB). Fernando é o pé de valsa do lugar, festeiro e gozador como sempre foi. A M. Antonieta adora ele, e está até aprendendo a dançar gafieira, que ela diz ser bem mais divertida que os minuetos e quadrilhas que dançava com seu marido, o Luís, um personagem metido a besta que não se conforma em não ocupar o trono do lugar (que aliás, já é meio apertado, pois nele sentam três, como vocês sabem, apesar da pomba-gira não ocupar muito espaço). A Antonieta vive convidando o Fernando, e às vezes ele me leva, para tomar chá e comer brioches (apesar de, por aqui, os pães se multiplicarem com muita facilidade, por conta dos truques do filho do Homem, que insiste em seus passes de mágica; pena que o vinho, que também produz em abundância, seja bem ruinzinho, e nem os padres se animam a toma-lo, e acaba sobrando para os santos, todos com infinita paciência para tais criancices).
Algumas pessoas não mudam nada por aqui, como o Fernando (e falo muito dele porque é com ele que gasto, expressão meio sem sentido nessas paragens, a maior parte do tempo; conhecer gente nova demora uma eternidade). Continua, o Fernando, o rei das traquitanas e mestre das invenções maluquinhas: "reorganizou" os arquivos de São Pedro e quase enlouqueceu o velhinho; construiu um "minhocário dos deuses", mas lhe faltam as minhocas que por aqui não há (nem na cabeça das pessoas); inventou de querer montar um ateliê para as "almas peladas" (acho que está ficando surdo como a mãe dele, e o José Eduardo, e confundiu "penadas" com "peladas"; ou então porque, enxuto e movimentoso como está, anda pensando muito em "peladas", pois vive me dizendo querer se mudar para outro provedor, o heaven.ala.mu, onde diz ter mais virgens do que aqui pãezinhos). Assistimos juntos os jogos do Fluminense (quando os há), e as caminhadas de vocês (todos os dias). E como olhamos de cima (Fernando, quando me chama para espiar, me diz: "Vamos para o Google Earth?"), ele vive encarnando na careca do José Eduardo ("Olha pro teu rabo, macaco!", digo a ele rindo, pois os cabelos dele não se multiplicaram, apesar de viver desafiando J.C. pra fazer esse truque).
Outras pessoas, quando chegam aqui em cima, mudam completamente. Como eu, que vivo alegre, risonha, sem me queixar de nada e com cara de deslumbrada até hoje. Nem quando penso no tempo que perdi por aí com bobagens, me entristeço (o único que liga para o tempo perdido é o francesinho, o Marcel P, que continua em busca do dele, mesmo com aquela asma horrível, que ele insiste em não deixar a mãe dos santos curar). Mas, confesso, olho para vocês com saudades. Às vezes sonho (acordada, que aqui ninguém dorme, ou é tudo um sonho, ainda não sei direito, mas pouca diferença faz), e sonho que estou aí com vocês. Acho que até poderia ser feliz, coisa que sempre me foi muito difícil. Essa coisa de cidade pequena no meio da cidade grande, me pareceu um achado genial do José Eduardo (mesmo que tinha sido meio sem querer, que sei que foi, mas mesmo assim...). Uma "pequena grande Sacra Família do Tinguá, ou Sacrão, como tão bem disse o Pipoca, e ao mesmo tempo, toda a potência urbana de uma metrópole paulista. São só sonhos no meio de um sonho, mas, quando os tenho, fico ainda um pouco mais feliz.
Pos sou feliz não sendo, meus queridos. Não me preocupo com dinheiro, não tenho de cozinhar para ninguém (nem para mim mesma, que é só chegar para o lado de alá, logo ali, que a comida é farta e nos descansa do eterno maná dos deuses), não me revolto com a Rosinha, nem me preocupo com o Cabral (aliás, o outro, o português, não dá sorte: sempre que pega uma nuvem para ir a algum lugar, pega a maior calmaria, fica vagando na imensidão e acaba onde não queria ir). Só tenho coisas que sempre quis: vejo muita ópera (já estou até me fartando da Callas), olho a dança das baleias nos mares daí como nunca poderia se aqui não estivesse, converso com o Borges (que, vendo novamente, vive de olhos fechados, pois diz que assim enxerga mais longe), me divirto com as molecagens do Fernando e, principalmente, vejo vocês dois tão unidos, tão amigos, tão dispostos e alegres.
Só não gosto de pensar em Sacra. Não vou nem falar nisso. Só aviso vocês que o Zé Mané tá feliz, caçando preás pelos brejos e até deixou uma cadela prenha de zezinhos. O Miguelzinho cresce cheio de carinhos dos compadres, e o Francisquinho continua trabalhando muito, mas sem ninguém para filosofar na varanda (agora que já não estou mais, resolveu, para me homenagear, tentar dar cabo da braquiara, coisa que ele sabe impossível; mas fico emocionada com essa coisa que o deixa em paz com suas lembranças de mim). Do resto não quero falar. Ia entristecer a todos nós que gostávamos tanto de lá.
Dizem que estou mais bonita. No Fernando não acredito muito, que sempre foi um galanteador gozador. Mas os outros conhecidos que aqui encontrei dizem a mesma coisa. Deve ser a felicidade que aí me fugia nas sombras que aí deixei. Ando toda vaidosa! Mas, como tudo aqui, as coisas são só para nosso contentamento e desfrute, e mais não desejamos (José Eduardo, não esqueço aquilo que você me disse no, meu, domingo passado; na hora deu um nó na minha cabeça, mas agora entendo, acredito, e fico feliz).
Vou ficando por aqui, meus queridos. Daqui a pouco tem show do Pedrinho Mattar, que acabou de chegar, e todo mundo vai estar lá (até o G. Gould, que, aqui, pianista é pianista, com dedos demais ou de menos, e a música é sempre divina). Aqui todo dia é uma festa, como na Paris que o Ernesto, que é como eu chamo ele, vive a nos contar. Fernando manda dizer para o Zédu deixar de ser boiola, e prô Pipoca virar macho (e morre de rir). Eu mando beijos e, se pudesse, muitas orquídeas para a nova casa de vocês.
Com meu amor eterno,

G.

PS. Acho melhor explicar essa coisa do Fernando banido da lan-nuvem. Aqui nada é proibido (nem comer maçã, fofoca mentirosa que, infelizmente, pegou). Assim, o Fernando não foi, oficialmente, banido. A coisa é mais sutil: cada vez que o Fernando entra na fila lá na lan-nuvem, aparece um santinho e pede a ajuda dele prá consertar alguma coisa. Ele esquece o mail e vai, feliz da vida, arruinar outra máquina celeste.O pessoal aqui é muito cristão, mas não é nada bobo.

C´Oração

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Ave, Marias, de todas as raças
Mistérios, gozares, desgraças
Bendita sois vós, em mim demente
Desvarios, de'lírios, serpentes
Infinito desvio de meu não saber

Bendita sois vós, tod'as mulheres
Desrazão benvinda de meus bem quereres
Perdição infinda onde me erro ermo
Sentido pleno de meus mancos termos
Cruzes de meu mais phoder

Bendita a fruta de vosso ventre
Que tomo com bocas, línguas e dentes
E mais narizes, dedos e pobres caralhos
E molho nas gotas de teus orvalhos
A flor de meu convosco ser.

Bar do Frango, 01 de março de 2007

Errata

De médico e louco,
Todo médico tem um pouco.

Março, a praça que não tínhamos, eu e Pipoca.


A descoberta da praça e da alegria do Pipoca, e das coisas simples, e de todos os sábias.


Março de 2007