quinta-feira, 30 de abril de 2009

Pessoa em repetição





Análise
Fernando Pessoa


Tão abstrata é a idéia do teu ser

Que me vem de te olhar, que, ao entreter

Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,

E nada fica em meu olhar, e dista

Teu corpo do meu ver tão longemente,

E a idéia do teu ser fica tão rente

Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me

Sabendo que tu és, que, só por ter-me

Consciente de ti, nem a mim sinto.

E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto

A ilusão da sensação, e sonho,

Não te vendo, nem vendo, nem sabendo

Que te vejo, ou sequer que sou, risonho

Do interior crepúsculo tristonho

Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.
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12-1911
Poema de 1911, quando o poeta tinha 23 anos, mas já era Fernando Pessoa

quinta-feira, 16 de abril de 2009

De resto, a verdade que ainda resta em mim

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Vermeer
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Re(a)colhimento

Quando eu te contar a verdade,
não diga nada!
Qualquer boa vontade,
será a vontade errada.
Quando eu te disser a verdade,
cale-se! Apenas ouça!
Palavras de louça,
frases rendadas
feitas de espuma,
enfumaçadas,
letras que escorrem
em areia pelos dedos,
brumas de uma manhã bem cedo.
Quando eu te falar a verdade,
não tenha medo!
Fica comigo no teu ouvido,
me acolha o colo que nunca dei,
me salgue as lágrimas que não chorei,
escuta o dito que não direi
e tudo que sobrar devido.
E me recolha em concha,
na ponta dos teus dedos,
no seio dos teus medos.
E quando a ostra, como é das ostras,
novamente se fechar,
aceite a trouxa ali recolhida,
e me deixe na praia,
no quebra mar,
entre as espumas,
as brumas e o litoral.
Quando eu te obrigar a verdade,
não me queira mal!
E guarde um pouco de mim
em um canto dos olhos teus.
Me leve calada, contida,
no brilho de teu olhar,
a verdade dita,
o fim,
restos do eu.
Quando eu te calar a verdade,
resto e me deixo,
no teu colar!
O resto é seixo,
para Iemanjá.

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sexta-feira, 10 de abril de 2009

Idos de um maio antigo nº 2

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Magritte
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Entradas e Bandeiras
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I
Bendita a falta do grão de areia
que ao impedir da concha a doente pérola
me permite saber, da enrugada ostra,
o sumo d´elas e o sabor das carnes.
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E com a droga de vida tomada na veia,
na boca o gosto de minhas carambolas,
em nau fragata, de velas postas,
parto no agora que antes foi tarde.
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II
Nos frágeis fios de uma teia troncha
escolho os cacos de meu ser amante.
Esqueço a pérola, retenho a concha,
e vou, ao avesso, garimpar diamantes.

Pescador não sou, sou bandeirantes.
Volto ao começo, caio na estrada.
No passado deixo o que me é distante,
e vou caçar futuros em novas entradas.
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III
E seguirei adiante, sem Tordesilhas,
um pouco infante, bárbaro um tanto.
Descobrirei princesas e impassíveis ilhas,
quase esmeraldas, falsos encantos..
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E nessas entradas de Compostela,
mato nos índios, neles me lanço
na busca fútil de uma tal costela,
falta passada, inarredável ranço.

IV
Fernão Bueno Dias de Anhanguera,
buscarei um só nesses outros tantos.
Às margens do Rio, descansarei das guerras,
enganarei indígenas, mágico e santo.

Dentro das muralhas onde serei inscrito,
espalharei sementes pela terra irada.
Colherei os frutos de meu suor maldito,
Bornel, bandeiras, outras entradas.

V
E parto, e chego, e torno a partir.
Não resto nunca, alucinado sigo
Construo rastros, planto o por vir
Capitão do mato, raso comigo
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Mas quando um dia, ao final chegado,
retomarei das pedras o precioso grão.
Doido alquimista, me inventarei achado,
e me plantarei cumprido no descoberto chão..

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Bar do Frango, 12 de maioo de 2007
Publicado em maio de 2007
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Idos de um maio antigo nº 1

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Salvador Dali, Narciso
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A Ópera do Fantasma
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A imagem é porta que barra e vela
o nada haver por detrás do espelho.
A moldura enquadra a aquarela,
suporta o fantasma que nos faz selo.
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O Real, miasma, nada se importa.
Insignificância sem remédio ou letra
no espelho, sempre, por detrás da porta,
remenda, costura e nos provoca a treta.
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A esse mistério o espelho nos remete
à sombra parca do que já não resta.
Mas Narciso insiste e se derrete
O fantasma persiste e faz a festa.
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quinta-feira, 9 de abril de 2009

Coisas de abril nº 2 ( e a luta continua)

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Van Gogh
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O Valor de uma apóstrofe
(dedicado a Seu Zeno)
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Fumar pode levar à amputação, me adverte o Ministério da Saúde impresso lá no verso de meu terreninho na Terra de Malboro. E eu, que sempre am´putei muito, fico a pensar, entre anelos de fumaça, se largando o cigarro não mais am´putaria, coisa que muito me enfadonha as perspectivas. Será que parando de fumar estou condenado aos amores sóbrios, às paixões seríssimas, ao sexuar-me só para fins de reprodução de garotinhos? Jamais am´putaria novamente? O que fariam meus dedos, já que o Ministério da Saúde não me garante o piano no qual me concertaria, se não mais ousassem rapinagens quando enfim me am´puto? Meu nariz, nunca dado ao classificar de vinhos, cafés e outras beberagens, se não se am´putasse comigo restaria cheirando o que? Minha língua que, confesso, já foi mais ofídica, serpentearia por que desvãos se não mais fosse comigo am´putada? Sem contar com meu pobre apêndice masculino, outrora até mesmo másculo, mas que ainda às vezes se ergue e tem belezuras para oferecer, o que seria dessa pobre coisa que em mim carrego pendurado à espreita, se a ela não mais se oferecesse a am´putaria? Mistério da Saúde indeed! Quem souber a resposta, por favor, me conte. Se não me encontrar é que, uma vez mais, caí na am´putaria. Mas volto logo, am´putado e feliz da vida. Se Deus quiser.
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O maço, vazio; no bar, prateleira e meia
Uma vontade imposta, uma certeza plena
Fumo? Não fumo? Mas é lua cheia!
Agarro a desculpa, mais um apenas
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Bar do Frango, e de galos velhos, 18 de abril de 2007
Publicado em abril de 2007


quarta-feira, 8 de abril de 2009

Coisas de abril nº 1


Os ossos do Barão e os dentes do Leão

I.
Ando achando todas as mulheres gostosas
Peitos, bundas, entrepernas, semblantes e caminhares.
Me parecem lindas, plenas, serenas, e cheias de prosa
Fêmeas bem ditas, muito mulheres, carnes aos milhares.

Tesam-me a mente, recordam-me sonhos
Revolvem passados, acordam a besta.
Mas no olhá-las quieto, por detrás tristonho,
Descubro que já não sou fauno, virei esteta.

II
Guardo ainda alguma beleza
Um leve toque de realeza
Pinceladas de charmosa tristeza
Sucesso com minhas nêgas Tereza.

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Bar do Frango, 18 de abril de 2007
Publicado originalmente no dia em que foi escrito

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Frestas Venezianas, o poema que nunca foi dito

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Pois há futuro em nossas janelas,
Como em minha boca, um gosto ocre,
Me pinta um amor de aquarelas
Que faz de teu fel um resto doce.

Embriagado de ti, em ti me rendo
Ao teu de mim desconhecido
Nem te perdendo, nem te vendo,
Me entrego cego, reconhecido.

E busco ternuras de calendário,
Aos teus encantos, por fim, rendido.
De mim mesmo, meu adversário,
Me perco em ti, seu teu querido.

E busco o doce em tuas mãos,
Nelas me agarro, sobrevivente,
Como quem nega a própria razão
Na desmedida que nos faz gente.

E à tua pele dou a tensão
De ser nela a pele minha.
E aqui te faço minha perdição,
Meu sonho, minha alquimia.
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