quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

A morte e as Mortes de Mahler


É estranho pensar que Mahler, que em duas de suas sinfonias toureia musicalmente a Morte (a 2ª e a 9ª, e última, cada qual de uma maneira), acabou, por conta do filme sobre o livro de Thomas Mann, Morte em Veneza, tendo o adagietto da 5ª inevitavelmente ligado ao morrer-se. O clima do adagietto é pura Veneza, invernal, cheia de brumas, belezas escondidas e um certo ar de bela pestilência que corrói as coisas devagar (o médico e o jovem, lembram-se?). Por isso, a obra seria sobre o corromper da morte, quando ela nos chega pelas beiradas, e bem menos sobre a Morte em si, sobre a Morte idéia (ou, como caso da 9ª, a própria morte do artista).
Nas outras duas sinfonias, a 2ª e a 9ª, vale a pena notar a diferença de tratamento. A 2ª, obra de um Mahler relativamente jovem, a idéia da Morte é tomada com toda a fanfarronice dramática que uma Idéia com a da Morte merece de quem a trata com muito distanciamento, com a prepotência "juvenil" que o tempo se encarrega de ir podando na gente. A 9ª, por outro lado, é obra de um autor que sabia-se morrendo; a serenidade, principalmente, é sua marca. Sem teorias, ela é um legado de alguém que só sabia se expressar na música (e como os invejo!). Uma despedida, um adeus, uma partida. Aliás, em se falando de despedida, recomendo, com a força de minha alma (ver a Alma do Mahler), o último movimento do Canto da Terra, uma das mais lindas despedidas "amorosas" (e as aspas aqui vão por serem dois amigos, não dois amantes, que ali se despedem) já musicadas. Uma de minhas peças prediletas, mas cuja extensão (só o último movimento dura mais do que 30 minutos) me impede de dividir com vocês. Corram para comprar; garanto o prazer!
Mas, de qualquer forma, será sempre esse lindo adagietto que nos lembrará Mahler e a morte. As carnes que se carcomem e as palavras que Thomas Mann nos faz lembrar: Entra-se por mim na cidade da tristeza; entra-se por mim no abismo da eterna dor; entra-se por mim na mansão dos condenados. A eterna Justiça moveu Deus criar-me; obra sou da Divina Potestade, da suma sapiência, e do primeiro amor. Antes de mim não foram criadas, senão substâncias eternas, e eu eternamente duro. Vós, que em mim entrais, perdei toda a esperança de sair!” (Alighieri, s/d:69). A peste, a decadência, a elegâncja de Visconti, ele próprio um ser de decadente nobreza, as imagens e o miasma que a tudo aos poucos vai dominando., escorrem pelas notas do adagietto. A música aqui se liberta, como se se bastasse, desligada dos outros movimentos mahlerianos, e, como tudo no filme, se infiltra em nós, bela, pungente e extrema, e serenamente, triste.
O post é pela beleza da música, pelo livro que evoca, pelo filme que já não se fazem mais, pelo mundo que se dilui em uma peste luminosa, como a cegueira branca de Saramago.
Quanto a Mahler, o que mais poderíamos esperar de um homem casado com a Alma?

4 comentários:

P.Q.P.Bach disse...

Muito bom!

Anônimo disse...

Não por coincidência passei boa parte do dia ouvindo Mahler. Sua recomendação é tão boa que faço isto agora. Este foi o presente que me dei de aniversário. As metáforas todas perfeitas e as analogias literárias também.

Num dia de recolhimento com mil e tantas perguntas ouvir Mahler é como receber o próprio humor irônico do dito por ele - "um primeiro gesto amável da morte" - ao referir-se ao salvamento de sua hemorragia interna. No Canto da Terra - Das Lied von der Erde - a sublime grandiosidade aguça a angustia existencial que nos toma quase por inteiro em certos momentos.

Leio aqui no livreto do CD estas coisas que vou trazendo ao meu comentário como um estado de alma. Vejo no comentário sobre esta canção que nela confrontam-se a eternidade da terra com a efemeridade da vida, estando esta - a terra- envolta em névoa outonal como uma alegoria feita ao desencanto.

Queria muito dialogar sobre isto que você escreve mas me confesso sem forças até para alcançar mais profundamente o que diz em seu texto. Por isto voltarei a ele num outro dia, pois com certeza muito me ajudará a entender melhor o que agora sinto.

Um beijo meu amigo,

Meire

Zédu disse...

Peço perdão a todos, mas nunca me tinha dado conta de como as necessidades de compactação das músicas aqui postadas poderiam torná-las, musicalmente, menos prazeirosas. Mahler que me perdoe, pois vcs sempre poderão correr e comprar a obra, ou mesmo baixá-la numa internet musical, com a qualidade que a coisa merece. Mas deu para dar uma idéia, não deu?

Anônimo disse...

Oi Zédu,

Claro que deu sim para dar uma (ótima) idéia. A gente fica mesmo com vontade de ouvir a música postada por inteiro e em todos os seus movimentos. Mas a intenção de voltar nosso olhar à obra de Mahler supera a limitação do reduzido espaço da postagem. Sobre comprar o CD ejá me declarando uma pessoa incapaz de dizer se seria esta gravação recomendável, tenho feito a coleção Grandes Compositores da Editorial Sol 90 de Barcelona. O preço é ótimo . Não sei se sua avaliação sobre a gravação coincide com a minha. Mas fica a dica para quem desejar adquirir o CD.

Bj

Meire



Se form mesmo para perdoar ...tá perdoado...

Bj

Meire