quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Fragmentos


Fernando Botero, A carta, 1976

Te deixo minhas pertenças
e todas as coisas tolas
que tínhamos às pencas.
.
Te deixo as músicas olorosas,
as tardes de vinho
e as taças chuvosas.
.
Te deixo uns poemas usados
com palavras que se calaram
nas teias do já consumado.
.
Te deixo alguns sonhos tortos,
e um despertar tão súbito
que nos acordamos mortos.
.
Te deixo o quem sabe um dia
que, ainda ontem, acreditando,
nos encheu de tonterias.
.
Te deixo o gozo arranhado,
as tontas desditas
e o grito calado.
.
Te deixo a aposta falhada,
a escolha desfeita
e as cartas roubadas.
.
Te deixo o chumbo duradouro,
a mágica perdida do nada
e o nunca jamais de ouro.
.
Te deixo agora e aí,
teu futuro presente,
restos do eu em ti.
.
Fica com tudo,
colhe tua gesta,
me deixe mudo. 

Frango, fevereiro de 2008

4 comentários:

Unknown disse...

Oi Zédu,

Gostei do poema, mas quanta beleza triste há nele.

Gostei do Botero e sua Boterona - boa escolha.

Bj.

Meire

Inês Queiroz disse...

"Jazz é um estado de espírito", diz o título de um de teus posts. Me valho das tuas palavras pra dizer q poesia tb é um estado de espírito. Tanto de quem a faz, qto de quem a lê.
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"Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.
Eugénio de Andrade
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Por enquanto eu tenho, em lugar do sol, nevoeiro dentro de mim. Quem sabe regressando outras e outras vezes a esses versos, eu fique cega de tanta claridade?
Bjs,

Anônimo disse...

Lindo lindo esse testamento.
Continue mesclando tua poesia, teus textos tão sensíveis à boa música. Assim mesmo, do jeitinho que está.

Bj.

Neuza

Anônimo disse...

Sábado é um bom dia para voltar a algumas coisas revendo-nos nelas. E não é que leio o poema de um outro outro? Será que eu hoje estou outra?

E ele é lindo como o achei e não tão triste como o senti na primeira visada, quando dele a mim bateu como de beleza triste...

Revisitando aqui o nosso Quintaninha pensei em lhe presentear com isto porque hoje é sábado:

Se variam na casca, idêntico é o miolo,
Julguem-se embora de diversa trama;
Ninguém mais se parece a um verdadeiro tolo
Que o mais sutil dos sábios quando ama.
DA CONDIÇÃO HUMANA
(Mario Quintana)


Um beijo meu amigo,

Meire