domingo, 23 de março de 2008

Consciência de Zeno

Modigliani
"Preciso parar de fumar, ou melhor, vou parar de fumar. Esse que agora acendo é o último, o derradeiro. Enfim me libertarei. Apesar de que, pensando melhor, acho que pararei depois do cardiologista. É isto. Jurarei contrito frente ao Dr. Murilo e, depois, nada de cigarro. Pulmões saudáveis, coronárias em flor. Juro! Prometo! Depois do nazista médico serei outro homem, não mais subjugado por esse vício hediondo. Me sinto outro desde já. Vou comemorar fumando outro cigarrinho que já se incluirá na lista dos últimos. Juro!
Às vezes, quebrar os vícios - e os temos aos borbotões, muito além daqueles que o Ministério da Saúde nos adverte ou o Código Penal classifica - exige uma certa literalidade. Por exemplo, o abandonar velhos caminhos, coisa que me propus, ou melhor ainda, sair do lugar onde restava imóvel desde muito tempo atrás, vicioso deixar-me estar que ela jogou pela janela.
Pois quando me vi lá embaixo, depois da queda que caí na dela, levantei tonto feito coelhinho de parque de diversões, sem saber que direção tomar, para onde caminhar. Os amigos, atrás da cerca como nos parquinhos, colocavam suas apostas nos números das casas para onde eu seguiria. Eu, triste coelho assustado, só sabia que tinha de sair dali, caminhar para fora daquele centro que me imobilizava ridículo.
Aí, tendo corrido para minha casa nova, descobri que só poderia ser plenamente se mantivesse o caminhar, se fosse me buscar lá fora, longe dos entornos da casinha e pronto para me deixar ser navegado pelo nunca dantes. Mas era um viciado em casinhas, cantinhos, azeitonas sofás amigos, todos lugares de me abundar em assentos que não alteravam a minha gramática. Foi quando comecei a ser literal, e me vi apostando em litoral, areias sem fim, pegadas apagadas pelo eterno retorno da onda que nos demarca a fronteira, sempre outra, litorânea. Comecei a caminhar, literalmente. Todos os dias. Cada vez mais.
Dou voltas na praça, com marcha de soldadinho cada vez menos de chumbo. Obrigo as pernas, que já não se cansam tão cedo, assopro indolências, me coloco em movimento. Caminho, toda manhã, cada vez mais, pelos jardins do Pipoca.
Alguns dirão que não vou a lugar nenhum. Que dou voltas, saindo e chegando a um mesmo lugar. Ao que responde o caminhante: não é essa a definição de uma revolução? Esse girar sobre seu próprio eixo e, como um rio, repetir-se jamais o mesmo? Não mais ver o bonde passar, mas revirar na unilateralidade de minha própria, e exclusiva, Banda de |Moebius?
Caminhando, sem seguir canção alguma que o sonho acabou faz tempo, caminho. Que era o que eu precisava. O resto é coizinhar metáforas e fazer delas prato saboroso. Um novo vício em que vou me viciando.
Mas o cigarro, juro que deixo. Logo depois deste que agora acendo no fogo do texto. O último.
Tão bom!"
.
Hoje é domingo de Páscoa, dia de celebrar ressuscitações, de se alegrar com a nova vida que se abre em frente, de celebrar com todos os queridos, a vida que continua depois de todas as mortes morridas no ano que a Páscoa marca passado. Estava em casa, depois de um devido delicioso almoço pascal, quando, janelas abertas, um pé de vento espalhou papéis que em antigas pilhas se empoeiravam na mesa do escritório. Ao catá-los, descobri o texto acima, escrito em já não sei mais quando, mas com todo o cheiro de coisa dos inícios do ano passado. Deve ter sido a primeira coisa que escrevi sobre o parar de fumar. Provavelmente a semente do que depois acabou virando o Com Ciência de Zeno lá pelos idos do março passado. Afinal, como acabei batizando-o, março de 2007 foi o mês da descoberta da Praça e do caminhar.
O quanto caminhei desde lá, as metáforas que coizinhei em pratos desta minha culinária das carambolas, os vários vício que venci, a janela que virou moldura do mundo e da vida que o habita, tudo isso me foi presente de algum coelhinho misterioso nesse dia de olhar para trás porque vamos em frente.
Pelo texto, era muito grande a solidão naqueles dias. De lá para cá, muitas pessoas ali nem desconfiadas, entraram em minha vida e caminharam meio que comigo. Outras vão entrando agora, mas já as sinto como velhos companheiros de jornada. Outros, que nem desconfio quem sejam, me conta o contador de mim, como meu amigo(a) de Mountain View, Califórnia, que virou minha referência de todos os desconhecidos que por aqui se repetem. Com todos vocês quero dividir esse meu presente de Páscoa (e muitos saberão que, apesar do cigarro que continuo fumando o último, há muito que celebrar). E recoloco, como meu presente a todos, meu coelhinho mágico, que apareceu de alguma cartola misteriosa no final de novembro quando eu, finalmente, abria as janelas para que saíssem todos os insetos.
Love you all!









PS. Sobre o cigarro, ainda fumarei o último até o último. Quem sabe seja essa a missão que a Páscoa me reserva. Mas já não prometo nada, só continuar fumando o último.

2 comentários:

Anônimo disse...

Zédu,

Grazie a Dio, que os bons ventos campineiros trouxeram à tona a consciência de Zeno ornada por um belíssimo Modigliani.

Que jamais se aplique ao ato de tomar cada cigarro como o último o velho ditado: "os últimos serão os primeiros" . Que continuem a ser mais um dos últimos até que um deles, único e singular, seja então o último.

Meno male!

Não sei, mas vejo vir vindo no vento, o cheiro da nova estação.

Um beijo

Meire

Anônimo disse...

Zédu,

Grazie a Dio, que os bons ventos campineiros trouxeram à tona a consciência de Zeno ornada por um belíssimo Modigliani.

Que jamais se aplique ao ato de tomar cada cigarro como o último o velho ditado: "os últimos serão os primeiros" . Que continuem a ser mais um dos últimos até que um deles, único e singular, seja então o último.

Meno male!

Não sei, mas vejo vir vindo no vento, o cheiro da nova estação.

Um beijo

Meire