segunda-feira, 10 de março de 2008

Primeiras letras


Salvador Dali, é claro

É de manhã/vem o sol/mas os pingos da chuva/que ontem caiu... Assim começava o disco, e foi mais ou menos isso que se deu, um sol que saiu de repente. Era a moderna música brasileira se apresentando. Claro que já tinha acontecido Orfeu da Conceição lá no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Elizete já tinha gravado Canções do Amor Demais, mas nada disso ainda tinha chegado à Rua Emilio Ribas, aonde ainda escutava minhas músicas no vitrolão da sala, que só tocava 78. Ou seja, ainda estava na fase de clássicos, pianistas Cheios de dedos, e cantores franceses. Mas esse disco mudou tudo para mim.
Na casa vizinha à nossa, vivia a família de Seu Teobaldo e Dona Maria. Três meninas, Bartira (muito mais velha que eu, ou seja, 3 ou 4 anos), Iara (ou seria Yara? também um pouco mais velha, mas que acabou meio amiga na época do Culto à Ciência, por conta das caronas na Kombi de meu pai), e Cidinha, essa quase da minha idade e cuja turma de meninas eu freqüentava, já que na vizinhança os meninos eram, ou muito mais velhos que eu, ou bem mais jovens. Por isso, durante muito tempo minha turma de rua era um bando de meninas (Denise, outra vizinha de parede, Cidinha, Maria Helena) e eu, todos moradores da mesma quadra ali na Emílio Ribas. Com elas fumei meus primeiros cigarros (mentolados, na casa de Denise), com elas descobri essa coisa chamada "menina apaixonada" (não por mim, que era, aos olhos delas, um menino um pouco mais jovem e parte da turma, meio irmão mais novo; eu fui só ouvinte das risadinhas nervosas, das avaliações sobre meninos que as interessavam, ´ssas coisas, mas foi quando aprendi essa coisa de "namorar", e de se apaixonar, coisa que vai acabar fundamental na história deste LP de Agostinho). Só fui ter uma turma de meninos, assim mesmo sem abandonar as minhas meninas (que nunca abandonei, mesmo que as de hoje não sejam aquelas daqueles tempo, e só sejam meninas para meus olhos de menino), depois de entrar no ginásio no Culto à Ciência.
Mas, no que aqui interessa, foi na casa de Cidinha, que já tinha uma vitrola (hi-fi e estéreo, ainda por cima) que tocava os então meio recentes (pelo menos em Campinas) LP´s, que conheci o Chega de Saudade de João Gilberto e esse disco do Agostinho dos Santos, objeto deste post e porto de muitas lembranças. Mais ainda, foram esses dois discos que me fizeram pressionar o meu pai até que ele acabasse comprando nossa primeira Sonata, uma vitrolinha portátil fabricada aqui mesmo em Campinas, e pronta para os LP´s e discos de 45 r.p.m. (mas que não era estéreo e nem sei se hi-fi;), onde escutei muito os discos que Cidinha me emprestava, já que o dono do dinheiro em casa insistia em LP´s de Connie Francis, Nat King Cole, e coisas do gênero.
Acho que como o disco do Agostinho era uma coisa menos revolucionária do que o do João, e cheio de músicas com uma poética mais romântica, ele me impressionou mais do que o Chega de Saudade, que depois viraria marco da bossa nova. João era uma ruptura mais radical com o ritmo e o cantar, coisa que levei ainda um tempo para incorporar. E, confesso, para o menino que escutava só música clássica, ou cantores franceses, ou as músicas da MPB "antiga" na rádio, foram as letras cantadas por Agostinho que mais me impressionaram, principalmente aquelas que completavam as músicas do Tom. Pois eu era um menino pronto para me apaixonar, e Agostinho era bem mais romântico do que João. Mas ainda não era homem para sofrer como se sofria nas músicas antigas, cheias de dramas passionais; eu era mais a beleza levemente triste de Vinícius.
O disco trazia em seu lado A, músicas de Antonio Carlos Jobim, que ainda não chamávamos Tom, em várias parcerias. No lado B, músicas de Fernando César, autor que sumiu depois da onda da bossa nova, mas que ali servia como demonstração da própria posição de Agostinho dos Santos, pego meio de surpresa entre as "músicas antigas" (apesar de Fernando César não ser exatamente um "antigo", mas nunca conseguiu ser "novo" - vejam a lista de suas músicas e respectivo(a)s intérpretes aqui neste link). Agostinho, dono de uma voz sensacional, foi, até sua morte no acidente da Varig em Orly, um cantor sem gênero definido, capaz de cantar as coisas modernas de Tom (como neste álbum), e Balada Triste, uma música super cafona que fez muito sucesso na sua época e que um dia ainda posto por aqui. É interessante notar que esse Lp de Agostinho foi lançado no mesmo ano que o Canção do Amor Demais de Elizeth Cardoso, tido como marco inicial da bossa nova (talvez pelas músicas serem todas daquela nova dupla, Tom e Vinícius, talvez pela batida ao fundo do violão de João Gilberto, sei lá, pois a interpretação da Divina era mais antiga ainda que a de Agostinho; coisa do mundo, minhas nêgas).
Disco lançado em 1958, não me lembro quando ele chegou na casa de Cidinha, provavelmente anos depois, já que com dez anos de idade eu não teria condições de me deixar tocar por ele como me deixei. E naquele tempo, entre o lançamento de algo no Rio (então capital cultural do país, pobre Rio, hoje meio que só sede da Rede Globo) e a chegada da coisa em Campinas, anos poderiam se passar (a televisão era precária, não haviam as redes nacionais, e, surprise!, muito menos a Internet). Mas, pelos efeitos que conto abaixo, eu devia ter uns 12, 13 anos, ou seja, aconteceu lá por volta do início da década de 60. O uso que fiz da música que aqui posto foi no ano de 1963, mas como ela ficou esperando para ser usada vários anos, a data de minha descoberta do LP deve se situar em algum lugar entre 60 e 62.
Mas aqui o que interessa é a minha descoberta das letras. Pela primeira ves as letras falavam comigo, se colocavam em minha boca como um "meu dizer possível", embalavam um "dizer de amor" que eu não conhecia antes nas músicas que escutava, havia uma poesia diferente nas letras de Vinícius e nas dos outros autores (nos comentários vou colocar a relação das músicas do disco e vocês entenderão melhor). Acho que aí começou minha paixão por essas coisas das músicas que dizem, que me declaram, que me deixam encantado e apaixonante. Eu, e nem sabia disso ainda, me descobria um apaixonado pelas palavras "bonitas", pela poesia de amor embalada em melodias idem, pela possibilidade de sustentar ilusões amorosas na leveza das belas palavras.
Apesar de eu logo saber cantar todas as músicas do lado A (e sei até hoje), uma delas, essa que aqui coloco em sua versão original, marcou-se particularmente. E de dava uma vontade enorme de ter uma namorada para propor-lhe a música como "nossa música". Ou seja, eu tive a "nossa música" antes de ter um "nós" que a justificasse. Às vezes penso que isso se tornou um hábito, essa coisa de fazer das namoradas meros veículos para palavras que me encantam, sejam elas vindas embaladas em músicas, sejam elas senhoras de meu próprio dizer. Essa música foi "nossa música" de meu primeiro namorinho, como estava fadada a ser qualquer que fosse a namorada. A namorada já foi de minha vida há muito tempo, mas a música ainda continua com esses ecos que aqui explico tão longamente.
E continuo um apaixonado pelas palavras. Nestes tempos de solidão que atravesso neste meu retorno capenga (afinal, nunca voltei para Campinas; vivo em Barão Geraldo, que é outra coisa), foram as palavras neste blog que me sustentaram apaixonado, estado que tenho muita dificuldade de não viver. E continuo, como o menino que fui, querendo muito uma namorada que me permita viver, mais plenamente, esse meu encantamento com as palavras, agora minhas por direito de autoria. Que venham as velhinhas! Eu não existo sem vocês!
Com vocês, Agostinho dos Santos, música do Tom, letra de Vinícius.


Um comentário:

Zédu disse...

Relação das músicas do LP, lembrando que no que me diz respeito, só o lado A se marcou. Não consigo me recordar de nenhuma das músicas de Fernado César.
Lado A, músicas de Tom
01 - Estrada do Sol (Tom Jobim / Dolores Duran)
02 - Sucedeu Assim (Tom Jobim / Marino Pinto)
03 - Eu Não Existo Sem Você (Tom Jobim / Vinicius de Moraes)
04 - Foi a Noite (Tom Jobim / Newton Mendonça)
05 - Se Todos Fossem Iguais a Você (Tom Jobim / Vinicius de Moraes)
06 - Por Causa de Você (Tom Jobim / Dolores Duran)
Labo B, músicas de Fernando César
07 - Tudo Ou Nada (Fernando César)
08 - Dó-ré-mi (Fernando César)
09 - Graças a Deus (Fernando César)
10 - Segredo (Fernando César)
11 - Deixe Que Eu Possa Esquecer (Fernando César / Renato de Oliveira)
12 - Crepúsculo (Fernando César / Renato de Oliveira)