quinta-feira, 27 de março de 2008

O Filósofo, as mulheres e os botequins

Na década de noventa, século passado, tive um outro período em Barão Geraldo. No início em um dividir-me entre Rio e Campinas. Mais tarde, quando fui tentar tornar-me um douto ignorante na Psicanálise, lá na PUC de São Paulo, tirei todas as licenças a que tinha direito na UFRJ e aboletei-me por aqui em Barão. Mas tudo isso já foi dito lá no Eununca Suméria, primeira parte de minha autobiografia não autorizada. Aqui me interessa a história que leva à música de hoje.
Naqueles tempos havia um barzinho em Barão, de nome Salsichic, que era meu ponto habitual nas noites baronenses. O Salsichic era um bar muito especial, destes que quase já não se fazem mais e, sem dúvida, melhor do que qualquer coisa que já conheci nesta Barão século 2i em que me meti.
O Salsichic era um bar pequeno, sem nenhuma frescura, com música ao vivo todas as noites, cerveja geladíssima, preço mais do que justo, que dificilmente fechava antes das 3:00 ou 4:00 hs da madrugada, qualquer que fosse o dia da semana (com exceção dos domingos, em que fechava lá pela meia-noite, não por vontade do dono mas por falta de movimento. Os horários do bar eram tão inusitados que nem no Rio, de onde eu vinha, conhecia qualquer lugar semelhante.
A música, com cantores e/ou pequenos conjuntos de MPB e chorinho, era da maior qualidade, as pessoas vinham de Campinas, Paulínia e outros lugares todas as noites para encher o bar de risos e cantorias, sem que isso me impedisse de, lá na minha mesa quase cativa, eu estudasse Lacan, escrevesse trabalhos de doutorando (meu primeiro trabalho para a PUC/Renato Mezan foi dedicado ao bar assim: Ao Salsichic, pelo lugar.
Minha mesa ficava quase na entrada do banheiro masculino e era tão quase cativa que Miltinho, o Gerard Depardieu em miniatura que ficava atrás do balcão vivia me prometendo uma plaquinha e um abajur para facilitar a leitura, coisas que nunca se cumpriram. E a caminho do banheiro, quase que todos os dias, passava um já mamado Ramón, parava ao meu lado e, com o dedo em riste, me acusava: Você é uma fraude! Só Sartre estudava em botequim. E seguia impávido para atender os chamados da natureza. Ramón e esse Deux Magots tupiniquim, lembrei em um poema em fevereiro de 2007, lá pelos inícios do blog (depois coloco nos comentários).
Os outros homens todos não me acusavam de fraude, pelo menos não como Ramón, mas juravam que tudo não passava de uma cena para impressionar as moças do lugar. E como realmente impressionava, não adiantava eu querer dizer que estudava de verdade, escrevia coisas seríssimas, elocubrava nós borromeanos e bandas de Moebius enquanto o corpo balançava com a música. De um certo modo, eu me sentia sendo mais divertido do que Sartre, que há muito já havia caído de moda. Além disso sempre fui mais bonito que o medonho filósofo francês (e as mulheres que eu impressionava eram bem mais bonitas que a Simone do outro). E não falava francês, só lacanês.
Pois alí eu estudava, pelo menos até uma certa hora, até o momento de me juntar a alguma outra mesa e ficar até o fechamento do bar. Na maior parte das vezes, Jailson, o dono, fechava as portas e mantinha um grupinho bebendo por conta da casa. Não era raro o dia que bebíamos até lá pelas 6:00 hs da manhã e, depois, seguíamos em romaria para o café da manhã na casa de Jailson.
Às quartas, cantava um rapaz muito bom, Marcílio, cheio de marcilietes. Marcílio cantava MPB moderna acompanhado de seu violão. Tipo Chico, Caetano, zum de besouro, luz da manhã,´ssas coisas que a gente gostava sem vergonha nem saudades. Inevitavelmente, em algum momento da noite, Marcílio gritava lá do seu "palco": Esta é para o filósofo, e apontava para mim, metido com meus Lacans e cadernos. Eu sorria de volta e ele mandava, com a maior seriedade, a música que posto hoje.
E não me perguntem porque ele achava que a música combinava comigo. Deve ser porque, para ele, que não me achava uma fraude ou um sedutor disfarçado de intelectual, só podia haver uma explicação para aquele afastamento da bagunça reinante no ambiente; uma dor de amor mal resolvida. Mal sabia ele que era só porque estava apaixonado. Pela Psicanálise.
Mas a música me caía bem. Até hoje.

5 comentários:

Zédu disse...

Deux Magots não era aqui
(para Rámon)


O ar, intelectual,
com a face cínica
de-vida.
Livros, papel, jornal,
e uma caneta de pena.
Óculos na ponta do nariz,
ar casual
mas infelizmente superior,
como de lei.
A noite toda só!
Em tera de cegos,
e vesgos,
errei!

Anônimo disse...

Dá um susto quando a gente diz na década de noventa do século passado , para falar de nossas outras experiências alhures...
Daquele seu período em Barão Geraldo, deu água na boca o tal bar por onde andou e viveu a sua paixão por ela - a psicanalise.

Convenhamos esta música lhe caia bem por muitas razões que não só a dita paixão do momento.Ou não?
Ou então, qual teria sido esta de quem psicanalise preencheu, como paixão, o devido lugar?

Brincadeirinha ....

Um beijo,

Meire

Jailton disse...

Doutor, que maravilha ler isso tudo, sua satisfação e a importância que, nós e o Salsichic, tivemos na sua vida baronense...
Você realmente deixou sua assinatura nesta história, minha e de muitos amigos...
Um grande abraço
JailTon (tá perdoado pelo JAILsON)

Unknown disse...

Esse texto conseguiu me trazer a cena do Salsichic como eu nunca poderia imaginar. Adorei poder conhecer este local que deve ter acolhido muitas cabeças como zedupoca. Parabéns ao filósofo e ao proprieário!

Unknown disse...

Esse texto conseguiu me trazer a cena do Salsichic como eu nunca poderia imaginar. Adorei poder conhecer este local que deve ter acolhido muitas cabeças como zedupoca. Parabéns ao filósofo e ao proprieário!

Sonia Fontes