quarta-feira, 9 de abril de 2008

O amor e as borboletas amarelas


Tenho muito poucas memórias de meus tempos de menino. A maioria das que tenho não tem cheiro, sabor ou sensações que me permitam dizê-las minhas. São mais histórias do folclore familiar que, de tanto que foram repetidas, acabamos incorporando como nossas. Mas a gente sabe quando uma memória é nossa de verdade por que essas nos causam um arrepio de sensações, um revivenciar cheiros, sabores, temperaturas, barulhos, tudo que compõe o quadro da memória em questão. As borboletas amarelas são uma das poucas que conservo destes tempos de tão antigamente. Já me explico.
Fila do Cine Ouro Verde, então o mais luxuoso de Campinas (e,é claro, não existe mais; por sorte não virou bingo nem caça níquel Universal do Reino de Deus), eu de mão dada com minha mãe aguardava a vez de entrar para assistir aquele que talvez foi meu primeiro filme "adulto". O ano? Alguma coisa muito próxima de 1955, quando o filme foi lançado. Com certeza bem antes de 1958, pois me lembro que na entrada o porteiro ousou falar para Dona Nise que eu não podia entrar por, obviamente, não ter os 10 anos necessários para cumprir com a censura do filme. O pobre não conhecia minha mãe e eu, orgulhoso dela e sua coragem para enfrentar pobres porteiros de cinema, acabei entrando. E, como agora percebo, entrei bem, pois o filme marcou para sempre meu "ser-para -o-amor", essa tristeza de fundo, esse medo do final infeliz, e os arrepios que até hoje me causam as borboletas amarelas. Bem mais tarde, a música, com Nat King Cole, também virou minha.
O gozado é que eu nunca achei a música triste, apesar da história daquele amor infeliz ter me marcado tanto. Hoje, pensando melhor, o filme também tentava passar uma imagem de o amor, mesmo com a morte de um dos amantes, vale pelo que foi e a vida sempre continua melhor depois de uma grande paixão. Mas isso é hoje, quando já não estou mais para coisas de amores, apesar de estar cheio de sabedorias.
O filme é simples e banal. Médica chinesa, radicada em Hong-Kong, conhece correspondente de guerra (da Coréia) americano e se apaixonam, apesar das diferenças raciais, dos preconceitos de ambos os lados. Logo após os primeiros beijos, no alto de uma colina e acompanhados por uma borboleta amarela (Cena inesquecível 1), ele parte para o front. Lembremos que, teoricamente, os riscos que ele corria eram pequenos, já que era um mero jornalista cobrindo a frente de batalha. Mas...
Cena inesquecível 2: ela está cuidando das criancinhas enfermas (sim, a boníssima, belíssima e deliciosa doutora era médica pediatra) em uma espécie de sala de recreação, onde um monte de chinezinhos recorta figuras, pinta folhas de papel, ´ssas coisas que as crianças fazem nos recreios oficiais. Corta para ele embaixo de uma árvore coreana batendo a máquina (pois é, eu quase escrevi digitando) uma carta de amor para ela. Corta para o recreio. Corta para ele de olhar abobado como ficam os apaixonados, principalmente quando é um ator fazendo de conta. Corta para o recreio cheio de vozes infantis, corta para ele e um zumbido de fundo que vai ficando cada vez mais forte, corta para a sala do recreio, close em algo vermelho que explode e se esparrama sangrento em um chão indefinido naquele corta prá lá, corta prá cá. Corta para ela, cujo rosto demonstra saber exatamente o significado daquela tigela de tinta que havia se espatifado no chão da sala do recreio. O zumbido, como ficamos sabendo depois, era de uma bomba que escolheu mirar na árvore em que o feliz apaixonado escrevia para seu amor. Assistam o filme e me contem se essa cena não é magistralmente dirigida (coisa que agora percebo, pois na época só fui capaz de enxergar o horror daquele final trágico para o amor daqueles dois).
O cinema era um choro só. Minha mãe, de choro raro, não era exceção. Eu, acho que estava mais assustado com os perigos do amor do que triste. Afinal nunca tinha visto um amor tão de perto. Na cena final, também inesquecível, ela sobe a mesma colina ao som da música tema do filme e lá de cima contempla o mundo que continua a girar, com ar de tristeza contrita. A borboleta amarela vem lhe fazer companhia. Ela esboça um sorriso.
The End
Agora me digam vocês, era ou não era para me atrapalhar todo o futuro amoroso que me esperava nas dobras do destino? Ou, no mínimo, era ou não era para se arrepiar até hoje com as borboletas amarelas?
Em todo caso, é uma de minhas mais antigas, e marcantes, lembranças da infância. E, mais ainda, lembrança da vez em que namorei minha mãe de mãos dadas, antes da tragédia do amor assustar o menino.
Saudades de minha mãe, saudades de Dona Nise. Suplício de uma saudade, but love is a many splendored thing.
. , .
A cena que escolhi para fixar a música guarda pouca relação com as coisas que contei sobre o filme, mas se marcou, muitos e muitos anosdepois, na minha percepção adulta como uma das cenas mais sensuais que já vi no cinema. Esse ele acender o cigarro dela no dele (em 1955 todos fumavam nos filmes, até as criancinhas; coisas, sabemos hoje, do merchandising da indústria do tabaco americana), ambos em roupa de banho depois de uma travessia a nado da Baía de Hong-Kong, os olhares pegando fogo, o desejo ardendo nas carnes molhadas... Assistam e depois me contem se é ou não de uma sensualidade poucas vezes inigualada nesses nossos tempos tão mais permisivos e tão cheio de explicitudes sexuais. Tempos ingênuos, mas cheio de hormônios a flor da pele.

4 comentários:

I'm nobody/Who are you? disse...

Zédu, tenho apreciado muito esses esboços de passado. Obrigada por compartilhar tantas lembranças. Não sei se concordo com Proust quando diz que os verdadeiros paraísos são aqueles que nós perdemos. No entanto, o dizer é belo. Passo o anel. Abraços. F.

Anônimo disse...

Já com o anel entre as mãos, quero dizer que dentre as muitas outras lembranças que tem provocado em nós, hoje você me proporcionou o reviver de emoções assemelhadas às suas. A então menina, na mesma época também começava a saber do amor por imagens, sonoridades, temperaturas e não sem motivos a corar as faces. Ao final e guardadas as diferenças entre o ser menina e o ser menino, nossas emoções e perplexidades com a beleza e sofrimentos trazidos pelo amor não eram diferentes. Para ambos os tempos do saber do amor com suas borboletas amarelas e ingênuas vinham sim carregados dos hormônios a flor da pele. Talvez por isso, este filme simples e banal fez escola pela sensualidade no sentido posto por você. Quem sabe tenha sido muito bom para nós o viver de um tempo não tão absolutamente antecipador das explicitudes sexuais?

Quase entro aqui em considerações sobre o amor nos anos 60, quando nos nossos 11 aos 20 ou 21 anos vivemos as experiências formadoras do que de certo modo fomos e somos ainda hoje.

E como recordar é viver sigo agora o modo simpático da F. passando também o anel.

Um beijo.

Meire

I'm nobody/Who are you? disse...

Vocês se lembram da cena final de "As invasões bárbaras"? No momento da morte: o mar, as ondas, as pernas belas de uma bela mulher. Tudo tão metonímico... Grande abraço.

video porteiros disse...

É sempre bom quando você não pode apenas ser informado, mas também divertir! Tenho certeza que você se divertiu a escrever esta entrada article.Excellent! Estou à procura de temas tão interessantes como este. Aguardamos a sua próxima postagem.