sexta-feira, 25 de abril de 2008

Livro de horas

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Livro de horas

Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.

Me confesso
possesso
das virtudes teologais,
que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.

Me confesso
o dono de minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo andanças
do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira seta acima
e abaixo de minha altura.

Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!

Miguel Torga

3 comentários:

Anônimo disse...

As poesias de Miguel Torga revelam que nada do que viveu o deixou indiferente. Pelo contrário, há sempre nos seus versos um ameno endurecer de alma.
Bela poesia!
Lais

Anônimo disse...

Zédu, este poema me levou para um outro, não me lembro o nome do autor:

"Quem passou pela vida em brancas nuvens e em plácido repouso adormeceu
Quem não sentiu o frio da desgraça
Quem passou pela vida e não sofreu,
Não foi homem, foi espectro de homem,
Só passou pela vida, não viveu."

Cristina

Anônimo disse...

O google me contou que o poema acima, que me traz tanto desconforto, é de Francisco Otaviano.

Assim como a escolha do crucifixo como símbolo da igreja é também uma exaltação ao sofrimento, muito diferente do poema de Miguel Torga que se reconhece e se aceita tal qual é, por inteiro.

Cristina