terça-feira, 21 de outubro de 2008

Dez pedaços e uma palavra

.
Picasso

Engasgo

No início, era só um coração

Meio morto, meio cansado

Um som de samba canção

Um sonho se querendo sonhado.

.

No começo, então, foi o sonho

Um algo por demais imaginado

Uma mesa onde me proponho

E te espero de olhos calados.

.

Depois um conto, uma bossa nova

O sábado, o hotel e as ancas

Um final que nos pôs a prova

E uma decisão assim meio manca.

.

E fomos, de final em final

Sem nunca termos começado

Uma distância sempre fatal

Dois sonhos desacordados.

.

Mas era tão forte o encontro

Que sempre que terminados

O desejo nos fazia de tontos

E nos rejuntava encantados.

.

Mas entre uma razão mal temperada

E a temperança de cabeça pra baixo

Vivemos, quase sempre assustados

Um tarot onde nunca me encaixo.

.

E assim o fim foi determinado

Nos nossos olhares vesgos

Cada qual enxergando um lado

Desfeitos em um nós de cegos.

.

E restamos depois meio trapos

Meio bêbados, meio engasgados

Lembranças virando farrapos

Do olhar, o vento soprando os traços.

.

As brigas, as farpas, as tempestades

Fugas, gavotas, o Bach desafinado

Choros, soluços, maldades

Novos amores encomendados.

.

Das fugas pretendemos encontros

As marcas do outro em cada um o cravo

Na boca o amargo, os abertos pontos

O resto mal dito, nos sujeitando escravos.

.

Um dia, no amor pelas palavras

Por escrito fui costurando rasgos

E semeei as letras, e conjuguei as lavras

E, na terceira pessoa, me livrei do engasgo

.

Zédu, 20/10/2008



3 comentários:

Anônimo disse...

Enquanto ouço o Guarani, ouço Carlos Gomes, lendo essa beleza densa que nos versos postos por você fez a poesia. O reencontro com o amigo se faz sob grande emoção o poemeu de 20/10, dia em que não me saiu da lembrança, como amiga ingrata e distante por razões que lhe disse na mensagem enviada ontem a noite.

O poemeu é muito bom mesmo.

Ainda na abertura escutar Carlos Gomes é para mim, como viajar pela Amazônia de todos nós. Estar em mata densa e exuberante, como nela o é, até mesmo o mais estranho ou diferente canto de pássaros que por lá gorjeiam.

Muito bom estar aqui.

Um beijo com queijo ao amigo do meu coração

Meire

Zédu disse...

Meire, querida amiga
Que bom tê-la por aqui de volta. O blog sentia tua falta.
Beijos,

Inês Queiroz disse...

Querido menino,

Cá estou reinaugurando-me nos seus Desejos.
O seu poema é a síntese do quão cíclica é a vida, isto para não dizer cítrica. Começo, meio e fim. E depois de novo; mais um começo, outro meio e mais um final. E assim vamos nos repetindo.

---
O rio nunca está feito, como não
está o coração. Ambos são sempre
nascentes, sempre nascendo.

Milagre é o rio não findar mais.
Milagre é o coração começar sempre
no peito de outra vida.

Mia Couto
A Chuva Pasmada


Beijos meus,