segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Um dos inícios de tudo (muito pessoal)

A criança que fui chora na estrada
I
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A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
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Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
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Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
.Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
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II
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Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos.
Hora a hora Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.
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E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.
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Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me, Sem que eu perceba de onde vai crescendo.
.Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.
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III
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Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou?
Quem quero ser Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.
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Fernando Pessoa, Poemas de Alvaro Caeiro
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Os quatro primeiros versos deste poema, que custei a achar nos sites pessoanos, me foram presenteados em 08 de setembro de 2006 por G. como meu mais belo presente de aniversário. Foram eles, esses quatro versos manuscritos, e uma certa vontade de retorno à criança que eu também um dia deixei, que deram início ao meu processo de pensar a volta à cidade natal. Esse processo, que "terminou" com minha vinda para cá, foi bem mais complicado do que supunha ao completar meus 58 anos. Disso se falará por aqui, nem sempre factualmente, mas com meias palavras suficientes. O poema, independente de sua história comigo, é simples e belo, bem Álvaro Caieiro.

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