quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Tudo Ilusão II (comigo mesmo)



"Mas, se tudo é ilusão e ilusório, e essa é a conclusão fatal com que nos deparamos quando derrubamos os pilares da Fé e relativizamos o Absoluto, como fica, então, a possibilidade de felicidade do homem nesse exterior que o sujeita? Como fica, também, a possibilidade de uma civilização justa e desprovida de conflitos, onde o caráter quase-suicida de certas particularidades humanas não se oponham às necessidades da vida (realidade)? Morte e Vida pulsam nas questões acima e Freud nos mostra como a religião tenta transformar essa incômoda oposição pulsional na dualidade mais palatável da Vida e da Outra Vida, o que vai permitir, não somente o controle (via sentido) do indivíduo pela Ordem assim criada, que passa, então, a indicar o bom caminho, mas também que o sujeito suporte melhor a constatação da impossibilidade de participar de sua própria morte, isto é, do fato de que a sua morte, que virá, única certeza possível no campo do humano, situar-se em um mais além dele próprio, inevitável e, principalmente, inacessível na Verdade que porta.

Na busca de uma resposta para as questões acima, o texto do Mal Estar vai analisar, principalmente, a relação do homem com a cultura e a possibilidade de uma convivência harmônica e sem conflito entre essas duas ordens: a do indivíduo e a do exterior ao indivíduo (o social, o coletivo, os outros indivíduos, etc.). Nele, indivíduo e cultura/civilização vão ser demonstrados como resultantes sintomáticas de tensões inevitáveis entre a Lei (do coletivo) e o Desejo (do individual).

A inevitabilidade destas tensões Indivíduo versus Civilização, vai fazer com que a função castradora, presente em todo processo de socialização, seja vista como condição necessária e suficiente para o desenvolvimento da civilização. Se com o seu despreparo estrutural o homem busca a pré-sentida plenitude impossível, será só de posse da ilusão de perda que a castração simbólica institui, que se presentificará nele a Falta e o desejo de recuperar essa alguma Coisa que, na realidade, ele nunca possuiu ou experimentou.

O homem vai, então, em busca desses obscuros objetos de desejo, que irão servir para tamponar a ausência que a falta pré-sentida precipita e que ferem de morte a sua pré-suposta onipotência narcísica. E é essa busca de impossível que coloca os indivíduos em ação e, assim, gera todas as produções culturais que em seu conjunto coerente vamos chamar de Civilização. Ou seja, é essa ilusão de potência que norteia as buscas humanas e, ao mesmo tempo, gera, por ignorada no que tem de ilusão, os equívocos causadores do mal estar individual e social.

Em outras palavras, é ao barrar o Impossível na Verdade, que na verdade, por impossível, não necessitava ser barrado, que a Lei (Ordem) cria a ilusão do possível e autoriza a busca. Assim, é a Lei que institui o Desejo que bane, e esse, assim instituído, escreve as leis que controlam os desejos. As leis e os desejos, minúsculos representantes da Lei e do Desejo, se tornam, portanto, intrincados, amarrados um no outro, nó-meados, determinando, destarte, uma inscrição desejante para as leis e seus discursos. Inscrição esta que por remeter ao Desejo Original é regulada pela Lei, a mesma que ao expulsar o homem do paraíso, permite que este cresça e se multiplique. Não fosse o Pecado Original (demonstração fabulosa deste caráter duplo da proibição da Lei), bastariam Adão e Eva para completar o nirvana da criação.

As civilizações têm, portanto, uma eterna dívida de gratidão para com a cobra paradisíaca, essa grande injustiçada. Aliás, é esse caráter duplo da Lei que nos permite entender melhor a caracterização que, mais tarde, Lacan fará do Super-Ego freudiano. Se a Lei fosse autorizada pelo sujeito, e por isso por ele acatada, ela deixaria de cumprir seus objetivos, pois é preciso que tentemos burlá-la, mesmo que para isso paguemos o preço da culpa e do sentimento de culpa. O desejo do Desejo implica, então, em uma contraposição radical à Lei e à Ordem. E como inscrição da autoridade no interior mesmo do sujeito, o Super-Ego tem que cumprir essa dupla finalidade: ao mesmo tempo que nos controla (como na visão tradicional do Super-Ego como instância censora da personalidade), vive a nos ordenar: "Goza!".

Da mesma forma que vamos encontrar essa inscrição desejante em toda lei, os desejos e seus objetos só serão acessíveis ao indivíduo pela intermediação do simbólico, o que vai inscrever a lei no desejo. Círculo vicioso, aparentemente só se rompe pela castração mas, na realidade, se mantém incólume graças à ignorância do homem quanto às sobre-determinações que o sujeitam, ignorância esta que vai sustentar o livre arbítrio presumido do indivíduo e gerar, pelo desconhecimento e Não-Saber que implica, a repetição viciosa que caracteriza todo o comportamento humano.

Nesse sentido, a castração pode ser entendida como o corte que separa esse intrincamento e como aquilo que permite colocar a lei no lugar da Lei e o desejo no do Desejo, e assim fazendo, tirar o sujeito do redondo vicioso e paralisante do rebatimento obsessivo dessas duas ordens. Nessa transformação algo para sempre se perde, visto que nem a lei é a Lei, nem o desejo o Desejo; o preço do possível é a impossibilidade do Real. Essa castração inevitável, e sob certos aspectos desejável ainda que não desejada, deixa no Simbólico da lei e no Imaginário do desejo uma fenda, um corte, um buraco, marcas da Falta da Coisa que lá nunca esteve.

Buraco negro, a Falta é um vácuo que a tudo suga, não podendo, portanto, permanecer aberto, sob o risco do sujeito continuar paralisado (e agora não mais na be(s)(a)titude paradisíaca original mas em uma espécie de calmaria de olho de furacão). Por isso, a esse buraco tampona-se, costurando-o, sendo as suturas que daí resultam os sintomas dos indivíduos e das civilizações. Cada sintoma é, portanto, uma tentativa de resposta, uma costura, mais ou menos grosseira, do corte cesariano por onde o Simbólico, em um parto ao contrário, instala o Eu dentro do Sujeito e os Nós que o amarram à civilização a que pertence. Cicatriz, o Sintoma lembra a Falta, que lembra o Sonho, que sonha o Desejo, que deseja a Coisa que nunca se conheceu, aquele "eterno enquanto durou" que um dia, por ignorância, pré-sentimos como a um fantasma se pressente. Assim, apesar de solução, o Sintoma é cicatriz e, sempre que o tempo vira, incomoda; no mais das vezes, coça.

Daí o mal estar irredutível do indivíduo e da cultura, fruto dessa cicatriz suturante da ferida narcísica original, e responsável pela impossibilidade da felicidade humana e da harmonia social. O indivíduo e a cultura, o Desejo e a Lei, assim separados, vão, no entanto, permanecer ligados para sempre por uma espécie de atração gravitacional, formando um par excêntrico, cujo centro de gravidade vai se situar no vácuo deste espaço por onde transitam as energias que os mantém grávidos Um do Outro.

As Utopias, quer de Um, quer do Outro, ficam, assim, definitivamente banidas como possibilidade real de existência, restando a elas somente seu papel mítico, mas nem por isso menos importante, de propiciadoras das grandes viagens humanas. Querê-las, o nosso bem; acreditá-las possíveis, nosso mal. Em ambos os casos, um mesmo narcisismo. A castração cultural e a agressividade individual, componentes estruturais de uma relação por isso mesmo para sempre "problemática", determinam o grande sintoma que costumamos denominar realidade." (José Eduardo Teixeira Leite, O Mal estar das Organizações, cp 2, livro inédito)

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