

O ano? 1968. O ano em que a coisa ficou complicada aqui embaixo do Equador mais tropical que há. No final dele viria o AI-5, o sumo da burrice militar, os anos de chumbo, a covardia do Sistema, as mortes, os desaparecidos, os exilados, a nossa impotente derrota por muitos anos, até que a burrice se consumisse a si própria e caísse de podre. Em 1968 a ditadura, estúpida como soem ser as ditaduras, piorada pela burrice endêmica da classe militar brasileira, se instala sem vergonha sobre o país. Mesmo antes do terror anunciado, no entanto, já vivíamos exilados de nós mesmos em uma terra que não podíamos tratar como nossa.
Nesse ano, o Festival Internacional da Canção, patriocinado pela mesma Globo que vem navegando por ditaduras e democracias, escolhe duas músicas como finalistas de sua fase nacional. A escolhida iria "representar o Brasil" na fase internacional do festival (a Globo sempre teve essas manias de grandeza, esse desejo de ser internacional, coisa que um Bispo esperto anda incomodando): Prá Não Dizer Que Não Falei das Flores, de e com Geraldo Vandré, e Sabiá, de Tom & Chico.
A história vocês conhecem (ou não, já que ela tem 40 anos de idade e não tenho a mínima idéia da tua, ó leitor, e menos ainda de onde no mundo você me lê -também tenho minhas manias de grandeza, ainda que incentivado pelo meu contador). O Maracananzinho em peso canta com Vandré, que se apresenta sozinho com seu violão. Coisa de arrepiar qualquer um, mesmo sabendo que até Roberto Carlos, cantando suas bobagens atuais, acompanhado por um Maracanã de gente, é capaz de arrepiar qualquer um. Sabiá vence e recebe uma das maiores vaias já escutadas em festivais. É imediatamente classificada, em nossa tola festividade inconsequente, como música tolinha, cantiga de amor não condizente com a revolta instalada em nosso peito juvenil.
40 anos depois, pensem bem: qual das duas representava mais o sentimento de dor, tristeza, exílio em sua própria terra? A conclamação às armas explícita de Vandré ou a melodia do Tom, linda como só o maestro soube fazer na MPB, e a letra do Chico a nos lembrar do sabiá de Gonçalves Dias, das palmeiras que nunca crescem nos desertos do exílio, do sonho da volta e do dia que iria raiar? Quem protestava? Quem bradava burramente frente o Poder Armado e violento que nos calava, como depois calou Vandré, de alma perdida desde então? Com quem, até hoje, cantamos com uma emoção que só uma música linda, com uma letra primorosa, é capaz de fazer cantar emocionados? Quem ficará, sejam quantas forem as burrices, as ditaduras, as tolices liberais, que ainda hoje nos impedem esse Brasil onde, um dia, ainda cantará, soberano, uma sabiá no alto de uma palmeira que ainda não há?
Eu era jovem e também quase me enganei na classificação estúpida de "musica bobinha" que Sabiá recebeu. Não me lembro se vaiei, mas talvez tivesse vaiado. E Sabiá aqui comparece como meu pedido de desculpas envergonhado pela nossa estupidez da época. As massas unidas são sempre burras e presas fáceis das bestas armadas. A poesia, em música e letra, essa atravessa paredes, décadas, censuras e permanece, cada vez mais viva.
Agora vou até a Praça, olhar a palmeira que há por lá e, quem sabe, com sorte, escutar cantar uma sabiá.
Desculpa Chico, Saravá Mestre Antonio Brasileiro de Almeida Jobin!