domingo, 4 de novembro de 2007

Do Livro do Dessassossego

Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre criança.. Mas porque deixou que a Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não podia viver senão acarinhado, por que me deitaram fora o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma criança a chorar, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a tristeza da criança o horror desprevinido do meu coração exausto. Doo-me com toda a estatura da vida sentida, e são minhas as mão que torcem o canto do bibe, são minhas as bocas tortas das lágrimas verdadeiras, é minha a fraqueza, é minha a solidão, e os risos da vida adulta que passa usam-me como luzes de fósforos riscado no estofo sensível do meu coração.


Bernardo Soares (Fernando Pessoa), Livro do Dessassossego

Um comentário:

Anônimo disse...

Não sabia o que era bibe. Pelo que diz F.Pessoa imaginei que fosse mesmo um babadouro que agora sei bem que é. E, no entre cá e lá virtuais, como sempre faço,(rs)do livro do desassossego, diga-se sem que o soubesse ou quisesse fui até além mar e de lá lhe trouxe outra preciosidade do Pessoa:

A CRIANÇA que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em algum ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.

(Fadas sentidas por Paula Rêgo e Alberto Caeiro)

Outras preciosidades o aguardam - Visite o Blog http://citizenmary.blogspot.com/ para mim um outro achado a desvendar...

Um beijo