sexta-feira, 9 de março de 2007

Synãranô do Cucaú (texto da Gilza)







A estação quente campeava no mundo e tudo andava abrasado. Pedras e paus ardiam. A terra ia virando um pó seco que voava. A água minguava e nosso alimento também. Mesmo nestes extremos fogos não houve, nem tremeção de máquinas ou guerras. As formigas seguiam seus caminhos sem espanto algum.

Assim sendo, o sumiço dela, já de três noites, começou a parecer perante meu juízo como coisa própria dela, interna. Nem dado a maus pensamentos, nem ignorante, nem sábio dos perigos do mundo eu sou, donde, dei de enumerar juizadamente, e com esforço, uns possíveis motivos para esta já ruim novidade: a falta de Synãranô.

Este juizar tinha também o propósito de fazer passar a noite, pois comer eu não queria, nem folgar.

Era então mais isto ou aquilo: que ela estivesse na estação da obrigação de botar no mundo os nossos filhinhos ou dolente por ter se fartado demais.

Possível era que logo vinha. Assim, assoseguei, versejando para ela ausente, com a tristeza me alisando o rabo e ensinando que meu existir tinha pouco préstimo sem ela.

O cantador pode mais
do que o cabra podia:
com mais sentidos cantar
tua safra de encantos,
que todo o mundo aprecia.

Catita, novelo de encantos.
Boiúna te guarda e te guia.

Do ondular das água no rio,
do raio riscado no céu,
Boiúna ri!
Do lenho da sapopema estendido no chão,
da resina no tronco do cedro,
da finura do vento,
Boiúna ri!

A morena que há no morro é cheirosa.
Quando te cruza o caminho, ô
ela fica invejosa.
A tecedeira da teia é certeira e gulosa.
Quando te aprecia a caçar, ô
ela fica invejosa.
A palma no seu pedestal é formosa.
Quando te alteias, ô
ela fica invejosa.
A flozinha que há na relva é mimosa.
Quando te dormeces quieta,ô
ela fica invejosa

Novelo de encantos, catita!
Boiúna te guarda e te guia
ao meu encontro. Não quero viver só, nem poderia!
O cantador pode mais do que o cabra podia.

Na noite seguinte ela também não apareceu. Pois, então estava mesmo era feridíssima, ou morta, ou havia de me fazer entender, à altura do agravo, por onde andava que não voltava. Dois sustos e uma raiva. Me dei pressa e fui atrás dela, fui sim, lá nas bandas dela, mesmo com o risco de má acolhida e danei a procurar e muito procurar, com o juízo picado, de zangado a enraivecido e a mais ainda, e o menor sinal dela achei, no muito tempo e lugar que procurei.

De fruto desse grande demais desconsolo me deu uma tontura molente, estranha, como se eu estivesse no canteiro das arrudas. Nariz no chão, o resto de mim meio fora de mim e adormecido, perdido o sentido do que era noite ou do que não era, do que andava pelo mundo ou pulava ou corria.

Só senti inteiro de mim e vívido depois, mas doído, triste, com o coração perfurado fundo da falta dela, purgando um sentimento mortal de amor e saudade da minha mulher.

Fiquei lá, no campo dela, vagueando à toa e matutava: será, por acaso, que a danada me abandonou? Será que foi pelo mundo verde afora sem ligar que eu ficava para trás? E se foi de casal com um outro para embolada?
Então, hei de perseguir e alcançar e matar os dois de uma vez só! Hei de esquecer que matei ela e esquecer ela e hei de ser de bem com a minha vingança e depois esquecer que me vinguei. Hei ainda de comer os olhos dela, só os dela, que nunca nunca mais hão de estrelar na minha mente miúda, agora toda envenenada de ciúme da possível falsa.

A dúvida me pegou forte pelo rabo. Será por acaso, que essa cabocla foi embora? Não fechava sentido no todo do ocorrido comigo e ela, pois me esposava por seu gosto e nunca lhe notei a menor pausa ou esquivança. Donde, se por acaso não foi, ou foi por que quis ou foi mesmo sem querer. Sobretudo parecia mesmo é que tinha ido.

Passei mais noite no penar.

Dela ter ido por que quis não havia o que me consolasse, nem vingança. Isso me deu e passou, não ficou comigo, não era meu. O tudo ser belo daqui inspirava nosso viver: muito alimento, tudo paz, correrias e brincadeiras, o canavial, emboladas, tocas, cavos, ocos, ovos, tudo nosso!. Sois boba, nós era feliz e a seca havia de passar!

A idéia de ela ter ido mesmo sem querer, o meu juízo recusou. Sei que o fim por martírio é o requadro de nossas vidas simples, campesinas e assim sempre foi e será, parece.

Me deu umas doideiras e meu juízo recuou: foi saindo para outros mundos.

E se de galho alto para mais alto a brincalhona escorregou para o mundo azul e foi estar aos pés de Sua Senhora? E se foi pelo rio, coroada de folhinhas verdes, cercada do respeito geral, feito uma princesa brasileira? E se chegou sua hora de cavar para o mundo de baixo, que é o fim de todos nós? que sei?

Certo é que não está mais no nosso mundo. Nunca mais terei a minha catita. Está perdida!

Esta ciência certa que eu tive me pregou uma dor tal braba e mordente que me sinuou no ar, cobriu meu corpo de espinhos, me baralhou todo o dentro com o fora, de vez perdido. Aí que eu sofro e ardo, desesperado. Meu corpo coberto de espinhos se contorce e retorce e minha alma sai:

-Aí dor, aí medo, aí morte! Aí Boiúna grande, meu pai!Valei a um cabra cego, só e acuado. Sê clemente e me doe ainda uma vez a minha mulher!

Boiúna deu. O rastro dela em restos, carnes e sangues, se abriu no chão e seguindo vi, nas minhas fuças, pendurado nos arames, a matéria que sobrou dela, tão estampada e linda, floridinha, no comprido estripada, rompida, estufada de podre.

E alí mesmo, diante do fim dela, com o propósito daquela horinha, estava o assassino Francisco. A vista que Boiúna me deu, deu reto nas dele, calorosas. O grande, o astucioso armado vinha, mirando golpe ni mim.

Aí, Boiúna meu pai, tirou a vista e o resto.




Gilza Rocha de Melo, 2006

2 comentários:

Zédu disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Pipoca disse...

Este é o texto que eu falei para vocês, que veio na cabeça dela quando o Francisquinho matou a cobra, uma jararacussu prenha de, na menor, oito jararacussuzinhas. Ela ficou muito linda enquanto escrevia o texto, alegre,com uma cara de prazer que dava gosto ficar aos pés dela no computador lá em casa. Lembro dela toda nervosa quando criou coragem para mostrar pra ele, e de sua alegria escondida quando ele derramou um monte de elogios nela. Agora que já entendi que ela não vem aqui em casa, sinto uma saudade do cão dela.